RAIMUNDO NICOLAU DA SILVA
(Mundico
de Boronga)
DADOS BIOGRÁFICOS
Raimundo Nicolau da Silva, mais conhecido como
Mundico de Boronga, filho de Nicolau José da Silva, apelidado Boronga, de
família local, e Carmina, vinda do Crato. Boronga, dono de mercearia no
mercado, morreu cedo, no ano de 1949, deixando órfão seu único filho. A mãe,
então, como meio de subsistência, passou a atuar no ramo de hotelaria e de
confecção de bolos e doces. O fato é que soube criar muito bem o seu garoto,
mulato educado, de fino trato. Eu, ainda criança, conheci-o como aluno do
mestre-escola Miguel Guarani. Por ser a classe multisseriada, os adultos
estudavam separados da garotada. Mundico, por ser o mais aplicado entre os
rapazes, colocava sua carteira em um canto da sala e ali ficava a estudar,
lendo algum livro ou fazendo exercícios e tarefas que o mestre passava.
Assim foi durante os anos que frequentei a Escola Reunida Franco Rodrigues, nos
idos de 1954/55. Fui estudar em Jaicós e, anos depois, encontro Mundico de
Boronga feito mestre-escola daquele educandário de que fora aluno. Em poucos
anos, acumulara assombrosa bagagem cultural, possuindo noções aprofundadas em
vários ramos do saber. Como eu sempre tive propensão para as letras,
aproximei-me bastante dele após minha entrada no ginásio, em Jaicós. Posso
falar de suas qualidades de escritor, porque tive o privilégio de conhecer
algumas de suas composições literárias: contos, crônicas, artigos, poesias...
Neste caso se pode dizer que o aluno superou o mestre; mesmo porque Miguel
Guarani, sem muitos recursos financeiros para sustentar a família, não tinha
tempo de se dedicar aos livros, posto que vivia à roda das fazendas e sítios a
oferecer o dom do seu coruscante saber para tirar da ignorância os filhos de
remediados e ricos proprietários de terra e gado.
A educação é um processo em constante construção e seu andamento poderá ser
lento ou rápido, dependendo de certas circunstâncias, inclusive da tão alegada vontade
política, podendo, em muitos casos, até regredir. Outrossim, por vezes
fatores externos fazem surgir surtos de significativo desenvolvimento. Após
pesquisas por mim realizadas, posso afirmar com segurança que o processo
educacional em Francisco Santos é parecido com esse, apresentando seis fases
distintas, a saber:
1) a fase embrionária e assistemática, em que os pais mais financeiramente
aquinhoados contratavam mestres-escolas ou professores particulares para
desasnar seus filhos (nem todos) nas artes da leitura e da aritmética;
2) a criação, em 1935, de nossa primeira escola, que funcionava em uma das
salas da casa do senhor Licínio Pereira, sendo nomeada para o mister pedagógico
sua filha Maria Rodrigues dos Santos, a conhecida e querida dona Mariinha;
3) a fase Mundico de Boronga, de que falarei adiante;
4) a criação do Ginásio Cristo Rei;
5) a instalação do Curso de Ensino Médio Prof. Mariano da Silva Neto;
6) a determinação legal de somente contratar através de concurso e
pessoas com formação de 3º grau.
Das fases 1, 4, 5 e 6 não cuidarei agora; ainda assim menciono a 4ª e 5ª etapas
para referenciar Carleusa, que as propiciou e por isso merece todo o crédito em
razão das profundas repercussões e benéficas consequências que alcançaram esses
atos administrativos altamente republicanos, praticados durante duas de suas
administrações à frente da prefeitura.
Tratarei agora das fases 2 e 3 para, sobre a
primeira tecer algumas pinceladas históricas e, em seguida, escrever o PANEGÍRICO
ou merecido elogio a Mundico de Boronga, esse vulto quase esquecido e
sumido da vida social, política e cultural de nossa Terra.
Pois bem!
Em 1946, no governo de Rocha Furtado, foi construído, no Saquinho, o prédio que
ficou conhecido como Casa Rural, de série única, para abrigar a primeira
escola, mal equipada e com o mínimo instrumental pedagógico para escolas desse
tipo.
Sob o governo de Rocha Furtado, dona Mariinha, a primeira professora da escola,
foi transferida para Uruçuí, visando a atender solicitações de políticos locais
contrários à família Santos, que vinha há décadas fazendo a representação
política do então Jenipapeiro. Vale lembrar que Leônidas de Castro Melo fora
governador de 03.05.1935 a 23.11.1937 e interventor no período de 24.11.1937
até 09 de novembro de 1945, quando se deu a queda de Getúlio Vargas e ele
despencou do nicho intervencionista. Durante todo esse tempo, a família Santos,
em Picos e Jenipapeiro, atrelou-se a esse governante, beneficiando-se de todas
as benesses que pudesse auferir desse governo de exceção. Ao
interventor destronado sucedeu o médico José da Rocha Furtado, eleito
governador em eleição não apenas disputadíssima como tumultuada porque prenhe
de violência e desmandos policiais, conforme atestam as crônicas jornalísticas
da época que, por curiosidade histórica, andei compulsando.
Relativamente à transferência de dona Mariinha para Uruçuí, apoio-me não apenas
no fato real de todos conhecido em Jenipapeiro como no que aconteceu em todo o
Piauí, conforme atesta Cláudio Pacheco Brasil, em seu romance-denúncia Roda
Viva: "Ultimamente já estão sendo feitas transferências, para lugares
inaceitáveis, de funcionários transferíveis que não são livremente
demissíveis". (p. 150). A essa acusação responde José da Rocha Furtado, em
seu livro Memórias e Depoimentos: "Quanto à suspeita levantada de
que possa haver risco de graves coações morais e físicas, já entremostradas por
meio de demissões, remoções e nomeações de autoridades nas zonas atingidas pela
renovação, cumpre-me esclarecer que não se justificam os receios manifestados.
Com efeito, o Poder Executivo usou apenas do direito de substituir, como é de
praxe, em todas as sucessões governamentais, ocupantes de cargos de livre
nomeação por servidores da sua confiança. (p. 57). Ora, dona Mariinha era uma
simples professora do interior, não ocupando, de forma alguma, cargo de
confiança. Certamente ela não era concursada, mesmo porque, naquele tempo, esse
instrumento não era utilizado para acesso ao serviço público.
Tanto a desfaçatez das perseguições e transferências indevidas é verdade, que
Djalma Veloso, meio século depois, saiu em defesa de seu correligionário, em
seu livro O Político e Sua Época: "A UDN (...) queria promover
perseguições políticas, transferindo servidores para cidades distantes de seus
respectivos domicílios. (...) Naturalmente, aqui e ali, um caso ou outro possa
configurar, por uma conjunção de fatores, perseguição política. Nada mais que isso".
(p. 151).
Claro que essa "conjugação de fatores" tinha nome: a combalida UDN
local, agora vencedora e possuída de toda a ânsia pelo poder e com redobrado
furor de vingança, após tantos anos sob o tacão político da família adversária.
Para suceder dona Mariinha, foram nomeadas Da Luz e Carmosa (minha madrinha),
aquela para lecionar no povoado; a outra, no Alto de Zé Lima, localidade
próxima, bastante populosa. A essas foram se sucedendo professores e professoras
leigas, por ali passando mestres dedicados e de renome como Joaquim Hipólito e
Miguel Guarani, Teresinha de Chico de Franco, que logo abandonou o cargo para
se tornar freira. Após a interinidade de outra Teresinha, esta filha do mestre
Miguel, assumiu o cargo de professor o nosso homenageado Mundico de Boronga.
Mas o que fez Mundico de tão especial que mereça registro em uma obra que se
pretende histórica e que busca resgatar, especialmente, o cordel? há de muita
gente se indagar, principalmente os mais jovens.
Eu respondo.
Idealismo, à luz da filosofia, "é a designação geral dos sistemas éticos
que tornam normais as ideias como normas de ação; e, sociologicamente falando,
consiste na criação imaginária de normas de ação tidas como perfeitas,
apresentadas como objetivo a ser alcançado". (wiki - 19.07.14).
Raimundo Nicolau da Silva, menino órfão, pobre, possuía uma extraordinária
percepção das coisas. Embora possa parecer contraditório, concebo-o como um
idealista e, ao mesmo tempo, um pragmático, visto que transformou ideias em
realidade, dentro das concepções de idealismo acima alinhadas.
Como se explica isso?
Já mencionei que Mundico de Boronga, como discípulo do mestre Miguel Guarani,
era o mais esforçado, dedicado e, talvez, o mais inteligente de todo o alunado.
Órfão, pobre, com uma mãe viúva a trabalhar diuturnamente para sustentá-lo e
educá-lo, e ainda, aqui e ali, experienciando, embora de forma velada, o
preconceito racial então muito forte em nossa comunidade, as solicitações da
vida, para o seu próprio bem, inclinaram-no para o estudo. A bagagem cultural
que conseguira acumular o premiou com o cargo de professor da velha Casa Rural,
já então elevada à categoria de Escola Isolada Franco Rodrigues, ali por volta
de 1957 ou 1958.
Não obstante ser mulato, o exercício do cargo conferia status, e todo
pai recomendava a seus filhos dispensar todo respeito possível ao mestre,
segunda pessoa da trindade - família, escola, comunidade - a influenciar de
maneira enfática na formação da personalidade do educando. Mirando-se em seu
próprio exemplo, e verificando as precárias condições da escola em que
lecionava, chegou Mundico à conclusão de que não conseguiria transformar seu
ideal de cruzada educacional na nova realidade que pretendia implementar junto
à sua variada clientela estudantil.
Que fez, então?
Criou sua própria escola, a que deu o nome de Educandário Cicerino.
(Quanto a Cicerino, informaram-me que seria homenagem ao Padre Cícero, do
Juazeiro. Uma vez que ele não era lá muito "católico", e em vista de
ser leitor aficionado de qualquer tema ou assunto, quer-me parecer que o louvor
se destinava a Cícero, o grande orador romano. Isso, porém, é mera ilação e só
a coloco como forma de evidenciar o apreço e dedicação de Mundico por tudo que
se relacionasse com cultura e educação).
De posse dessa ferramenta educacional, que instrumentalizou com tudo que era
pedagogicamente possível na época, partiu para a tarefa de convencimento de
pais e alunos sobre a importância do estudo, instrumento que estaria pondo à
disposição de todos a preço módico.
Após curto período de hesitação, as famílias aderiram à ideia e terminaram por
"comprá-la" com gosto. Mundico de Boronga, o idealista pragmático,
lançou-se à ingente tarefa de preparar alunos para prestar Exame de Admissão ao
Ginásio. Ele conseguiu adeptos em todas as camadas sociais - ricas e pobres.
Foram alunos seus, dentre muitos: Eduardo e Simplício de Izac, João Sacerdote,
Carleusa, Mariana da Silva, Maria Dulce, José Osvaldo, Ivanisa, Elizeu de Zé
Delfonso, Pascoal, Carlos de Zé Pedro, Evangelista e Maria de Preta...
Nenhum desses alunos foi reprovado no Exame de Admissão, em Jaicós ou Picos.
Descoberta a "corrida ao ouro da educação", daí em diante os pais de
família de Jenipapeiro despertaram da inércia do semi-analfabetismo em que
ficavam seus filhos, por falta de escola de 1º ciclo, ou seja, de um ginásio.
Antes, o destino de muitos era emigrar pra São Paulo, Brasília e outras regiões
ou cidades que oferecessem melhores oportunidades de sobrevivência, sendo o
estudo pouco cogitado ou ficando em segundo plano, quadro que aos poucos
começaria a mudar, quer entre os jovens de Francisco Santos, quer entre os
descendentes de pais emigrados em decorrência da diáspora econômica, mormente
nas décadas de 1960 e 1970.
Claro que nem todos os aprovados no Exame de Admissão conseguiram concluir o
ginásio em vista do pauperismo que, de modo geral, persistia entre nós naquele
tempo. Não foi um "ataque" de modismo, mas uma posição mais positiva
diante da vida. Tanto assim que, anos depois, com a instalação de um ginásio da
CNEG, a pedido de meu pai e devido aos esforços de Carleusa, a prefeita de
então, o entusiasmo da juventude pelo estudo redobrou. E a juventude, antes sem
perspectivas, alçou altos vôos.
As consequências de todo esse reposicionamento está hoje patenteada na enorme
quantidade de doutores filhos da terra, em quase todas as áreas do
conhecimento. O gatilho que ensejou o disparo da santa faísca da
educação foi acionado por Mundico e sequenciado por Carleusa. De forma
inequívoca, esses dois podem ser considerados mecenas da educação em nossa
Terra.
Em decorrência da fase Mundico de Boronga, criara-se um intercâmbio
muito grande entre nossa terra e Jaicós. Realizaram-se partidas de futebol,
enquanto comerciantes faziam escambo de suas mercadorias (e continuam fazendo).
Na parte cultural, o padre Mariano trouxe, inclusive, uma troupe de
teatro amador para apresentação de dramas e comédias. Até no aspecto religioso
houve intercâmbio. Isso era comprovado através das caravanas de peregrinos que
demandavam os Morros dos Três Irmãos, situados no interior do município de
Jaicós, festa tradicional que se realizava desde 1914.
Mas Mundico não se limitou apenas a transmitir conhecimentos curriculares. Ele
foi além ao adotar, como formas suplementares de higiene e, portanto, de
educação, o uso do lenço, o lavabo das mãos antes das refeições, o não andar
descalço e até o não sentar diretamente sobre a calçada. "O chão tem
micróbios, assim como as calçadas são cheias de vermes, e as mãos são infestadas
de bactérias. Tudo isso pode concorrer para a infestação das verminoses e
outras afecções danosas ao nosso corpo. Daí a necessidade de cuidados
elementares como esses que recomendo".
Sabia Mundico que um espirro ou uma tosse mais forte emitem no ar milhares de
vírus e bacilos, vetores capazes de contaminar as pessoas. Nesse tempo, em
Francisco Santos, a tuberculose ainda atuava de forma quase endêmica. Daí a
recomendação do uso do lenço. Por isso também podemos atribuir a Mundico o
papel de sanitarista.
Dezenas de ex-alunos seus me deram recentemente esses testemunhos.
* * *
A tarefa de escrever sobre Raimundo Nicolau da Silva, o quase esquecido Mundico
de Boronga, se mostrou bastante espinhosa em certos aspectos de sua biografia,
antes e depois de sua emigração. Não obstante possuir família numerosa - a
família CRATO - nenhum parente foi capaz de me fornecer, com segurança, dados
tão simples como data de nascimento, estado civil, grau de escolaridade,
profissão e residência. Apenas Botiqueira (tia) afirmou que Mundico jamais saiu
para estudar fora e que tudo o que aprendeu foi por "conta própria" e
com mestre Miguel Guarani. Um autodidata, portanto. Já Noêmia (prima) disse que
ele havia morrido, não sabendo dizer onde nem quando.
É como se ele tivesse sumido no ar, desfeito em vento.
Entretanto, ouvindo dezenas e mais dezenas de pessoas, em Teresina, Picos e
Francisco Santos, pude coligir alguns informes que permitirão formar um esboço
da vida desse cidadão, após emigrar da terra natal. Consta que teria nascido
entre fevereiro e março de 1936, contando, hoje, 68 anos. Que teria casado em
Santos-SP com uma japonesa e que teria ido residir em Marília-SP. (Zé Ilia e
Ana de Dadá). Simplício Morais Santos informa que ele esteve em sua casa, em
Teresina, não sabendo precisar bem o ano. Acrescenta, porém, que ele teria
vindo a nossa capital acompanhando um participante de um curso de
especialização do IAA - Instituto do Açúcar e do Álcool, do qual seria
professor.
José Arlindo Lima, conterrâneo residente em São Paulo, o teria encontrado e com
ele conversado bastante, ocasião em que lhe teria dito ser fiscal da Receita
Federal, em Santos, onde possuiria um bom apartamento.
Não se sabe ao certo a razão pela qual emigrou. Talvez razões políticas o
tenham desgostado. Em primeiro lugar, como respeitado mestre-escola, fora
convidado para a reunião em que seria definido o nome da cidade. Carta já
marcada, a quase unanimidade apontou o nome do Cel. Francisco de Sousa Santos
para paraninfar a futura cidade. Mundico teria discordado e sugerido os nomes
de Areias ou Geralho, este bem mais consentâneo com a realidade
agrícolo-econômica de então. Geralho: terra do alho; que gera alho.
A sugestão não foi bem recebida e Mundico teria passado a ser mal visto pelos
"grandes" do lugar. Como se sabe, em lugar pequeno, e muito mais
naquela época, o professor gozava de muito prestígio. Correu falação de que
Mundico não teria sido convidado para a solenidade de inauguração da cidade, a
24.12.1960. Pelo sim, pelo não, pouco depois ele deixou a direção da escola.
Percebendo que não teria mais vez na terra, buscou nova vida em outro lugar -
possivelmente São Paulo.
O que relatam as poucas pessoas que ocasionalmente o encontraram, é que ele
pede para não darem notícia suas a ninguém.
Desgosto? Mágoa?
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