segunda-feira, 26 de março de 2012

Cultura&Arte - Rosidelma Pereira Fraga

DA SOBREVIVÊNCIA DO SONETO
(DA COSTA E SILVA e FRANCISCO MIGUEL DE MOURA)


 Rosidelma Pereira Fraga*

Nesta conferência, realço como objetivo fulcral examinar a literatura piauiense, em geral e, em particular, a respeito de dois grandes poetas: Antônio Francisco da Costa e Silva e Francisco Miguel de Moura. Nomeio como palavras-chave a literariedade, a história e a recepção do leitor, de modo que a minha reflexão se fundamente na seguinte assertiva de Ezra Pound, em seu ABC da literatura: o mau crítico identifica-se quando em vez de debater a obra, discute-se o autor. Nessa perspectiva, interesso-me falar acerca da literatura supracitada como arte, expressão de identidade, memória e sistema literário, pautando-me no ponto de vista adotado por Antonio Candido em sua Formação da Literatura Brasileira (1987) e não como uma literatura documentária sobre o Piauí, nem muito menos como vida e obra desarticuladas de uma estética literária.
A literatura piauiense acabou recebendo tal adjetivo, assim como a literatura mato-grossense e outras menos divulgadas, por conta do “esquecimento”, mas elas são literatura brasileira unicamente pela qualidade estética das obras literárias e de autores que deveriam estar no destaque merecido em maior parte da história da literatura brasileira, ao lado de Gonçalves Dias, Cruz e Souza, Manuel Bandeira, Carlos Drummond de Andrade, João Cabral de Melo Neto, José de Alencar, Graciliano Ramos, José Lins do Rego, Guimarães Rosa e tantos nomes relevantes da literatura de todos os tempos, pois basta ler Poemas e canções, de Vicente de Carvalho (1866-1924) e constatar que Da Costa e Silva possui o mesmo quilate desse poeta no âmbito de uma literatura universal.
Da Costa e Silva e H. Dobal são os grandes poetas do Piauí. Torquato Neto foi um dos fortes representantes do “Movimento Tropicália” e tem o poema “Cogito” na seleção dos Cem melhores poemas brasileiros do século, organizada por Ítalo Moriconi como igualmente participa Mário Faustino com sua “Balada”, na terceira parte, curiosamente intitulada “O cânone brasileiro”. Isso não é suficiente ao escritor de qualidade literária. Respectivamente, Hardi Filho e Paulo Machado são grandes vozes da poesia brasileira e se me estendesse na lista cairia no lugar onde não planejei e nem pretendo chegar. Para um pequeno começo e arcabouço de nomes e obras, recomendo que o leitor deguste a incansável pesquisa de Adrião Neto (1995), no Dicionário Biográfico de escritores piauienses de todos os tempos, Literatura do Piauí (1859-1999), de Francisco Miguel de Moura, editada pela Academia Piauiense de Letras (2001), A poesia piauiense no século XX, de Assis Brasil (1995), ou mesmo a Literatura piauiense – escorço histórico, de João Pinheiro e, paulatinamente ler, conhecer, enamorar e julgar as obras, independente do lugar onde esse leitor habite.
Peço licença poética aos poetas da terra e aos leitores assíduos dessa literatura, sobretudo ao especialista da obra de Da Costa e Silva, o Professor Doutor Cunha e Silva Filho com sua pesquisa Da Costa e Silva: uma leitura da saudade. Pois bem, eu sou genuinamente uma leitora ou a soma de outros leitores de mãos dadas, os quais se tornam os responsáveis para que a obra literária permaneça viva e imortal, uma vez que o escritor nunca tem a sua última palavra, ensinou-me o crítico Maurice Blanchot, em O espaço literário (1987).
Abro um parêntese para realçar o que a literatura piauiense tem de relevante em termos de especificidade do texto literário e das qualidades estéticas tão imprescindíveis quanto aquela literatura consagrada e destacada pela crítica hegemônica, mas que por razões quiçá irrelevantes não entraram para o compêndio da literatura nacional. Isto porque, para muitos, “literatura boa é a literatura lida”, ou “literatura de qualidade é aquela confirmada pela crítica” ou “aquela literatura produzida nos grandes centros ou nas regiões não periféricas”.
 É bem verdade que muitos autores em regiões periféricas não conquistaram uma cadeira de prestígio na história da literatura brasileira para hoje entrar na discussão dos lugares ou entre - lugares da poesia e prosa contemporâneas. Ou tal literatura não recebeu honra ao mérito ou não fizeram jus a ela porque era produzida no Piauí e arrabaldes. Aqui neste instante de escritura, eu exerço, em forma de memória, a minha identidade perdida de uma pequena ex-leitora da graduação, hoje no doutorado em estudos literários, mas curiosa pelas descobertas como sempre fui. Recordo-me, com nitidez, que os meus professores de literatura brasileira nunca levaram a literatura piauiense para sala de aula, pois a crítica selecionada para leitura obrigatória também não falava dela, contudo um desses professores entregou-me a chave do poético apresentando-me A Formação da Literatura Brasileira para que, no futuro que agora se faz presente, eu estivesse aqui, de corpo e alma, a falar de literatura em sua especificidade.
Pergunto então e quem for leitor responda: como uma literatura pode ser lida se não é divulgada? Como um estado que possui um conjunto de obras com qualidade estética e autores significativos, inúmeras associações/centros culturais, academias literárias, com uma forte recepção e público, não pode constituir um sistema literário e entrar para a história da literatura dita nacional? É legítima a defesa de que isso não se aplica no século XXI porque a literatura produzida nas cidades de maior tradição literária: Amarante, Floriano, Luís Correia, Parnaíba, Campo Maior, Oeiras e noutras cidades do estado do Piauí como na capital Teresina, a terra do Torquato Neto, já não reside nas sombras do anonimato e nem nas ondas das manifestações literárias ou conjunto de obras isoladas e sim uma literatura que faz história em sua coletividade como escreveu o poeta Chico Moura, ao discutir as origens da literatura piauinense: “literatura em sentido histórico é literatura coletiva” (MOURA, 2008, p.1).
Atualmente, as obras literárias piauienses são lidas e apreciadas por leitores do Brasil e fora do país, com uma recepção calorosa. E não foi indispensável levantar “as bandeirinhas” para comprovar se essa literatura é canônica ou não. Eu sou mato-grossense, nunca fui literalmente ao Piauí, apenas literariamente. Porém, apreciei a poesia de lá e reservei um espaço nas páginas da minha vida para escrever a propósito dela, assim como investiguei a obra de Murilo Mendes, João Cabral de Melo Neto, Manoel de Barros, Corsino Fortes (Cabo Verde), Mia Couto (Moçambique), José Saramago e outros escritores de literatura em Língua Portuguesa. Examino a obra como literatura e linguagem e não meramente como lugares do Brasil ou especificamente do eixo Rio/São Paulo porque é a literatura recomendada pela crítica hegemônica. Não estou fazendo política para não lermos os clássicos, porquanto concordo com Italo Calvino quanto à importância de Por que ler os clássicos, mas creio que a leitura deles é crucial para posteriormente examinarmos que autores do Piauí, de Mato Grosso, de Goiás e outros estados também leram os clássicos, escreveram e continuam a criar obras de qualidade literária e nada deixam a desejar ao lado da literatura nacional.
Sob esse prisma, abro mais um parêntese para discordar daqueles que colocaram os adjetivos “literatura piauiense”, “literatura goiana”, “literatura mato-grossense”, dos quais não sou simpatizante e nem quero tomar partido, embora entenda que tais designações nasceram com intuito de “acordar” os de fora e dizer: “aqui também nós temos boa literatura”. Ainda assim, prefiro ler os poetas do Piauí como autores da literatura nacional da mesma forma que leio Gonçalves Dias, Castro Alves, Drummond, Augusto dos Anjos, Manuel Bandeira, Mário de Andrade, Jorge de Lima, Cecília Meireles, Manoel de Barros, Adélia Prado e outros nomes. Falar de um poeta nacional é reconhecer em sua obra as qualidades de sua linguagem e estilo, da forma como o crítico Wilson Martins glorificou H. Dobal, comparando-o ao nível tão elevado na poesia brasileira como é João Cabral de Melo Neto e enfatizando que ambos não têm nada a ver com a geração de 45.
Por assim defender, elegi dois nomes, por critério de gosto peculiar, pela temática e pela composição poética, dentre os quais apontarei sonetos marcantes, não querendo dizer que outros autores e obras não mereçam destaques, mas como o meu espaço é exíguo faço a minha indicação das vozes da literatura brasileira, em especial, do estado do Piauí, libertando-me doravante do adjetivo. Escolho Zodíaco (1917) e Pandora (1919), de Da Costa e Silva, Areias (1966) e Sonetos escolhidos (2003), de Francisco Miguel de Moura, na ordem dos nomes e na pauta do meu dia e, é óbvio, cometendo inúmeras injustiças com Torquato Neto, H. Dobal, Mário Faustino, O. G. Rego de Carvalho, Hardi Filho, Luiz Filho de Oliveira e outros poetas e romancistas que formam um sistema literário brasileiro.
Vamos ao poeta Antônio Francisco da Costa e Silva, o aclamado príncipe dos poetas piauienses. Ao olhar a obra de Da Costa e Silva, considero-o como um artista de todos os tempos e, mormente o poeta telúrico, cuja alma é solidificada no tema da saudade, solidão e melancolia que ora é instaurada na evocação da terra-mãe, ora nas reminiscências da infância.
Onde situar o poeta na literatura brasileira? Fausto Cunha assevera que o valor de Da Costa e Silva é evidente. Ele pode circular nas estéticas simbolista, parnasiana e modernista, ou melhor, “talvez ele seja o poeta angular das três correntes, porque assimilou o Modernismo em sua primeira fase” (CUNHA, 1995, p.56). Similarmente a Cunha, Assis Brasil certifica que Da Costa e Silva tem suas obras filiadas nessas três escolas, ao apontá-lo também como herdeiro da tradição romântica, simbolista e parnasiana e por seu convívio na fase pré-modernista:
Era natural que Da Costa e Silva fosse influenciado por nomes de quilate de Verlaine, Baudelaire, Nobre, Cesário Verde, Antero de Quental, Cruz e Souza. Embora muitos críticos o situem mais como parnasiano que como simbolista, por exemplo, alguns estudiosos de sua poesia flagram também Da Costa e Silva interessando a sua musa na linguagem do Modernismo (BRASIL, 1995, p.55-56).
Na minha leitura, Da Costa Silva é intensamente simbolista e sua linguagem banha-se na fusão entre a sonoridade e o sentido. A linguagem poética sugere por meio das repetições, da veia sinestésica e o poema passa a ser um véu bordado de palavras. Da obra Zodíaco (1917), apresento o soneto “Saudade”:

Saudade

Saudade! Olhar de minha mãe rezando
e o pranto lento deslizando a fio...
Saudade! Amor de minha terra... O rio...
Cantigas de águas claras, soluçando.

Noites de junho. O caburé com frio,
ao luar, sobre o arvoredo... piando... piando...
e, ao vento, as folhas lívidas cantado
a saudade infeliz de um sol de estio.

Saudade! Asa de dor do pensamento!
Gemidos vãos de canaviais ao vento...
As mortalhas de névoa sobre a serra.

Saudade! O Parnaíba – velho monge –

as barbas brancas alongando... E, ao longe,
o mugido dos bois de minha terra...
(DA COSTA E SILVA).

A leitura do soneto de Da Costa e Silva permite-me apontar a riqueza da universalidade temática que aflora nos signos da lembrança da terra, dos espaços que marcam a identidade do sujeito lírico-poeta (a casa da mãe, a terra, as festas juninas, a fazenda, o Paranaíba - rio e cidade). A terra é liricamente banhada pela voz do poeta, sob os símbolos alvos que lembram muito o poeta simbolista brasileiro Cruz e Souza, na escolha de vocábulos sinestésicos e sugestivos: “águas claras, soluçando/gemidos vãos de canaviais/barbas brancas”. Entretanto, percebo um traço ímpar que só um poeta que sente o cheiro e vê a cor de suas raízes é capaz de imprimir. O poema da nostalgia e da alegria leva o leitor para um ambiente que se abre para o espaço da literariedade: as águas de/do Parnaíba. Esse espaço está na linguagem que metaforiza e traduz a identidade marcada na escrita do outro (a terra) em de si mesmo.
     Da obra Pandora (1919), o soneto “Sob outros céus” segue o mesmo arquétipo das reminiscências telúricas:

                              
                           Sob outros céus

Eu sou tal qual o Parnaíba: existe
Dentro em meu ser uma tristeza inata,
Igual, talvez, à que no rio assiste
Ao refletir as árvores, na mata...

O seu destino em retratar consiste,
Porém o rio tudo o que retrata,
De alegre que era, vai tornando triste,
No fluido espelho móvel de ouro e prata...

Parece até que o rio tem saudade
Como eu, que também sou desta maneira,
Saudoso e triste em plena mocidade.

Dá-se em mim o fenômeno sombrio
Da refração das árvores da beira
Na superfície trêmula do rio...
(DA COSTA E SILVA, 1919).

No título do soneto perpassa a ótica de uma atmosfera germinada pelo distanciamento. “Sob outros céus” revela a fusão melancólica do eu-lírico e do rio Parnaíba, por meio dos elementos de similaridades (tal qual, igual). O poeta assiste ao rio e às águas rasas que se esvaindo nas matas, vão se emaranhando nesta contemplação da terra celebrada no âmbito da ausência, saudade, dor, júbilo e nostalgia.
Tal exegese pode ser mais plausível na terceira estrofe do soneto em que o sujeito lírico e a terra passam a ser indissociáveis: “Parece até que o rio tem saudade/Como eu, que também sou desta maneira, / Saudoso e triste em plena mocidade” (Versos 9-11). O espaço poético descortina-se pelo encontro recíproco da alma sombria e da superfície das águas.
Em efeito, o espaço da literariedade descortina-se na dimensão dos opostos: terra e céu, finito e infinito, triste e alegre, os quais formam imagens justapostas no ser da linguagem. E o canto da saudade germina por meio do poder da imagem poética que equivale às figuras autênticas e vivenciadas pelo poeta. Ademais, a saudade é uma temática dominante na obra de Da Costa e Silva, de acordo com a defesa do professor e crítico Francisco Cunha e Silva Filho. A lembrança é cantada sob a égide de imagens reais em vários sonetos do poeta. A autenticidade das imagens em Da Costa e Silva casa-se perfeitamente com Os signos em rotação, de Octavio Paz:
[...] as imagens do poeta possuem autenticidade: o poeta as viu ou ouviu. São a expressão genuína de sua visão e experiência do mundo. Trata-se de uma verdade objetiva, essa verdade estética da imagem que só vale dentro de seu próprio universo (PAZ, 1986, p. 37).
Paz (1986) garante que as imagens jamais se interpretam com palavras, uma vez que as imagens vão além do signo-objeto. Cabe, ao leitor, um repensar e reviver dessa veia imagística. Isso porque, numa perspectiva valéryana, o poeta e o leitor devem jogar o mesmo jogo, pensando por imagens. E a obra de Da Costa e Silva é um convite ao leitor na revisitação telúrica e no enaltecimento da infância liricamente sugestiva, simbólica e real.
Todo o construto imagético de Da Costa e Silva vale-se do universal, pois o poeta canta a sua aldeia, lembrando Léon Tolstoi: “se queres ser grande, cante primeiro a sua aldeia”. O poeta é universal nos temas da saudade e da infância nos rios do Piauí. Tais escolhas fazem o texto ultrapassar os anos, sendo sempre atual, porquanto, na visão do formalista russo Tomachevski, em sua obra Temática, o bom escritor deve perseguir a temática universal, aquela que em todas as épocas será lida e relida e capaz de reflexões. E não há nada mais de universal do que a terra, o lugar de habitação, especialmente a mais alta expressão de identidade e memória de um povo.
Na mesma estirpe de memória sinestésica, histórias, saudades e homenagem ao príncipe dos poetas piauiense, é o soneto “Visão do Rio Parnaíba”, da obra Areias, de Francisco Miguel de Moura que, para mim, apesar de ser a obra inaugural do poeta, é um dos grandes livros, ao lado de Universo das águas (1979), Sonetos escolhidos (2003) e outras obras.
O poeta Francisco Miguel de Moura, membro da Academia Piauiense de Letras, começou a produzir na década de 1960 e está em constante atividade poética e de crítica literária. Uma de suas formas de composição é o soneto, intensamente carregado de imagens, metáforas e símbolos que também aproximam o leitor do mundo telúrico. Por excelência, um sonetista de mesma qualidade literária que Da Costa e Silva e Raimundo Correia. A propósito, leia-se da obra Areias, o soneto “Visão do rio Parnaíba”:

Visão do Rio Parnaíba

(Com o perdão de Da Costa e Silva, o maior dos poetas piauienses).

Parnaíba, te vejo intensamente,
na dor de “velho monge” resignado,
a dar vida, prendido na corrente,
a derramar-te  longe, e fatigado.

No rijo dorso levas, noite e dia,

lendas, canoas, barcos, pescadores.
E em cada braço, a verde ramaria
enfeitada de rendas e de cores.

Sem bordão, sem rosário, sem vaidade,
desafias o sol, a areia ardente,
abraçando cidade e mais cidade.

Nessa faina, ora calma, ora inquieta,
humildemente, carismaticamente,
cantas do canto que cantou o poeta.
(MIGUEL DE MOURA, 1966).

A sugestão e o encadeamento de imagens poéticas são pontos fulcrais em Miguel de Moura. Para o escritor paraibano Paulo Nunes Batista (2002), no prefácio de Sonetos escolhidos: “[...] um dos fortes da poesia de Miguel de Moura é a criação de imagens poéticas de grande sugestividade. É um descrente, como João Cabral de Melo Neto e Bernardo Élis, que de vez em quando fala em Deus”, como irei mostrar posteriormente ao soneto acima.
Em “visão do Rio Paranaíba”, o poeta reconhece a presença precursora do poeta príncipe dos piauienses em seu pedido de “licença poética” quase em forma de homenagem a Da Costa e Silva, sobretudo ao finalizar o soneto. Assim como no texto de Da Costa e Silva, neste de Miguel de Moura sobrepuja o efeito sugestivo-visual em que as imagens da terra, da cidade, as cores, as lendas e as histórias se fundem em real grandeza e descrição pictórica.
Em um único verso, o eu-lírico anuncia a sua visão do rio: “Parnaíba, te vejo intensamente”. Os outros versos que seguem são encadeamentos de imagens próximas de uma tela que vai sendo, aos poucos, iluminada pelo lirismo da nostalgia fatigada do “velho monge”. Ainda que o poeta não selecione substantivos que se oponham às palavras “dor e prisão” da primeira estrofe, o leitor há de concordar que a sugestão dos signos na segunda estrofe traduz o significado da alegria e da liberdade:

No rijo dorso levas, noite e dia,

lendas, canoas, barcos, pescadores.
E em cada braço, a verde ramaria
enfeitada de rendas e de cores.

Nos versos acima, a poetização é levada ao plano de um quadro artístico que muito lembra a comparação de Simónides de Céos quando apontou a pintura como uma “poesia muda e a poesia uma pintura falante” (Muta poesis, eloquens pictura). Em Miguel de Moura, a poesia parece comunicar-se com a plasticidade das cores da pintura, com os bordados, nos dois últimos versos da segunda estrofe, mas ela não é uma poesia decorativa por si só, é antes de tudo expressão autêntica de uma terra amada pelo poeta.
Juntamente a tal imagem, o leitor tem o canto das lendas, impressões culturais, cantadas e contadas pelos pescadores às margens verdes desse universo mítico que vai se transformando o Rio de todos os poetas piauienses que me faz recordar intensamente dos versos de Alberto Caeiro: “o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha aldeia/ Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha aldeia [...] Porque ninguém nunca pensou no que há para além do rio de minha aldeia”.
Para além dessa aldeia piauiense, o rio Parnaíba, sem vaidade, sugere o símbolo da seca e opostamente o transbordar e o abraço de outras águas. A imagem que permanece no soneto é a de que o Rio Parnaíba será sempre o espaço inexaurível dos poetas que se misturam ao som das águas e das palavras, nomeadamente na evocação intertextual de Da Costa e Silva, revisitado na voz lírica de Francisco Miguel de Moura.
A respeito dessa marca intertextual, mas noutra perspectiva de rememoração, cito o soneto “Delírio”. Nele, a figura humana instaura-se no limiar das incertezas e da descrença que se assemelha ao desejo de Criador do Verbo, todavia um criador de imagens delirantes, com recortes na tessitura poética de memórias discursivas:

Delírio


Peguei da minha Bíblia Sagrada
pensando nela achar todo o Universo.
Lida e relida, não encontrei nada,
tão contrafeito, em dúvidas imerso.

Não tendo a fé no coração gravada,
a virgem fé de remover montanha,
a palavra de Deus, viva, inspirada,
trouxe-me a dor em dúvida tamanha.

Assim, crendo e descrendo, já deliro.
Assim, dias e noites se consomem,
e eu filosofo as dores que transpiro.

Se, enfim, elevo os pensamentos meus,
tenho a angústia infinita de ser homem,
tenho o imortal desejo de ser Deus.
(MIGUEL DE MOURA).

O soneto é caracterizado pela recorrência da memória lida e o leitor é provocado em dois instantes antagônicos: o momento que se configura na imagem de um sujeito lírico ateu (descrente) e o outro momento poético de um eu confesso na infinitude do Criador Divino e das Escrituras Sagradas. Não estou afirmando nada sobre o sujeito autobiográfico porque não conheço a vida de Francisco Miguel de Moura e, orientada por Ezra Pound, citado alhures, não pretendi falar do autor. É a obra que me proporciona a duplicidade de sentido na exploração da literariedade. Através dela, o poeta revela e desvela os anseios humanos por uma força mística, agnóstica, existencial e transcendental, ao mergulhar-se no desejo de compreensão do próprio universo, chegando a confundir-se nele e transversalmente pelo verbo que se faz carne-palavra. Concernente a similar interpretação, Nely Novaes Coelho escreveu: “Francisco Miguel de Moura aponta para a contradição existente entre o mundo à sua volta, mergulhado no escuro e o súbito vislumbre da força criadora, latente em seu próprio eu”.
O texto permite a leitura dos signos opostos por intermédio dos verbos “crer” e “descrer”, “encontrar” e “desencontrar” (no sentido de não achar). Dessa cadeia entre o significante e o significado, o leitor tem outros percursos da escritura de negação e afirmação: “não tendo a fé de remover montanhas”, “crendo e descrendo” e “sendo eu filósofo”. Em consequência, o ser existencial entra no conflito que move todos os seres: vida e morte, Deus e Demônio, céu e inferno. É justamente tal antagonismo que leva o eu-lírico à confissão de suas angústias humanas, revelando, por meio da imagem poética, o anseio dilacerado de converter-se na imagem de Deus como o criador do Universo, ainda que no plano enigmático e liricamente alucinado.
O soneto de Chico Miguel marca-se por um projeto de poiesis que começa e termina em si mesmo: a busca pela completude e compreensão humana frente à delirante ansiedade da origem da vida. Cumpre-me ainda dizer que a poesia cantada por Chico Miguel neste e noutros sonetos se aproximam dos pressupostos básicos da imagem poética discutida pelo poeta e crítico Paul Valéry (1991) quando escreveu, em Poesia e pensamento abstrato, que a poesia é uma dança cíclica que começa e fecha em si mesma.
Finalizando a minha homenagem concisa, sinto-me segura em dizer que a leitura dos sonetos de Da Costa e Silva e Francisco Miguel de Moura remete o leitor aos aspectos da revisitação do passado e dos momentos sui generis de poetas que não dissimulam na criação das imagens telúricas, pois ambos sentem e apalpam cada detalhe presenciado nos dias mais venturosos da vida: a infância. Esta é aflorada pela imaginação, num espaço utópico e mítico arquitetado pela memória: o rio Parnaíba. Tal exegese me fez pensar no fragmento do poema que abre Areias:

Não deixes que a areia
branca da infância
enferruge e coma
tua coragem.

Como a aranha tece,
tece a tua teia.
(MIGUEL DE MOURA, 1966).

E nas contexturas de memórias e na celebração poética da saudade, em momentos de produção cronologicamente díspares, dois grandes poetas brasileiros convergem-se nas imagens da terra-sacramento: o Piauí. Da Costa e Silva e Chico Miguel descortinam o espaço poético num cenário paradisíaco ou numa canção de Pasárgada piauiense que, pensando em Paul Ricouer (1978), seria a nova aurora da palavra, uma vez que, com o desabrochar da metáfora, a imagem poética “torna-se um novo ser da nossa linguagem, exprime-nos ao tornar-nos naquilo que ela exprime” (RICOUER, 1978, p. 321).

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Referências Bibliográficas:

BLANCHOT, M. O espaço literário.Trad. Álvaro Cabral. Rio de Janeiro: Rocco, 1987.
BRASIL, Assis. A poesia piauiense no século XX.  (Antologia). Rio de Janeiro: Teresina: Fundação cultural Monsenhor Chave. Imago Editora: 1995, 328 p.
CANDIDO, Antonio. Formação da Literatura Brasileira. 7. ed. Belo Horizonte: Itatiaia, 1987.
DA COSTA E SILVA, Antônio Francisco. Poesias completas (Org) Alberto Vasconcellos da Costa e Silva. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2000, 400p.
SILVA FILHO, Cunha Francisco. Da Costa e Silva: uma leitura da saudade. Dissertação de Mestrado. Teresina. Editora da Universidade Federal do Piauí/Academia Piauiense de Letras, 1996.
MOURA, Francisco Miguel de. A literatura piauiense por Francisco Miguel de Moura. In: Entretextos (org) Dilson Lages. Disponível em: Poeta mato-grossense. Professora Mestre e doutoranda na área de Estudos Literários – Universidade Federal de Goiás – Goiânia – GO.
 
 
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Painel da Cidade

    
    Renovar é Preciso

    O Poder Legislativo de Francisco Santos precisa ser reciclado urgentemente. É incompreensivel  e até inaceitável o que vem ocorrendo nos últimos tempos com a atual legislatura. Imaginem um dos poderes constituídos, com representantes legitimamente eleitos pelo povo para zelar pelo bem comum da sociedade, criar leis e fiscalizar a atuação do poder executivo, ir parar na delegacia.
    Pois é, meus caros leitores e parcos eleitores: O Poder Legislativo municipal foi parar na delegacia, por ultrapassar as suas competências. Ou terá sido por excesso de vigilancia? Se for este o caso, teremos que bater palmas, pois seria o primeiro ato fiscalizador da atual legislatura. Que não disse ainda a que veio, pois só votou titulos de cidadania(negando ou aprovando) ou reformando pareceres do Tribunal de Contas do Estado(órgão fiscalizador, gabaritado para tal função).
    A sociedade exige e necessita de representantes que defendam efetivamente seus interesses, atuando em todos os segmentos da sociedade e não apenas fazendo este assistencialismo barato que vicia e cria dependencia no eleitor, principalmente os mais carentes e os menos esclarecidos.
   



    ELEIÇÕES 2012: Atenção Senhores candidatos a vereador para os prazos.

 



    A eleição se aproxima e a cada dia diminuiu o prazo de desincompatibilização para aqueles que pretendem buscar uma vaga no legislativo (vereador). Buscando deixar candidatos e eleitores antenados sobre aspectos da lei eleitoral, o BLOG vai publicar periodicamente informações sobre o assunto. Nosso primeiro enfoque alerta candidatos a vereador sobre prazos de desincompatibilização, antes da eleição marcada para 7 de outubro. Confira:

    VEREADOR

    03 MESES
   Servidores públicos, estatutários ou não, dos órgãos da administração direta ou indireta; Agente comunitário de saúde, Agente de polícia, Empregado de empresa pública, Empregado de sociedade de economia mista, Escrivão de Delegacia de Polícia, Servidor de escola pública, Servidor do Poder Legislativo, Servidores em geral, Titular de Cartório, Servidores públicos ocupantes de cargos em comissão - Membro de direção escolar, Membro de conselho tutelar; Ocupante de cargo em comissão por tempo certo não demissível ad nutum, Servidor público ocupante de cargo em comissão.

    04 MESES
   Dirigente sindical, Dirigente, administrador ou representante Entidades de classe em geral , Dirigente, administrador ou representante da OAB .

    06 MESES
   Advogado geral da União; Presidente, diretor, superintendente e dirigente de Autarquia; Autoridade policial, civil ou militar, Sub delegados de polícia; Prefeito,  Defensor Público, Dirigentes de cooperativas e estabelecimentos que gozem de vantagens asseguradas pelo poder público; Presidente, diretor, superintendente e dirigente de empresa pública; Presidente de Conselho de Fundo Municipal de Previdência dos Servidores Públicos ; Dirigente, administrador ou representante de Entidades mantidas pelo Poder Público; Dirigente de Fundações públicas em geral,  Magistrado, Membros em geral do Ministério Público, Dirigente de órgão estadual,  Reitor de universidade pública, federal ou estadual, de natureza autárquica ou fundacional, Secretários municipais ou membros de órgãos congêneres , Delegado de polícia, Servidores púbicos ocupantes de cargos efetivos ou em comissão relativos a arrecadação e fiscalização de impostos, taxas e contribuições – efetivos e comissionados, Dirigente de Sociedade de assistência a municípios, Dirigente de Sociedade de economia mista, Vice-prefeito que sucedeu o titular.

 
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sábado, 24 de março de 2012

Pensão Cacilda - Por João Bosco da Silva.

    

    João Bosco da Silva, um dos maiores nomes da literatura franciscossantense. Um homem que muito tem honrado o nome de nossa terra, pela sua capacidade intelectual, como pela sua dedicação a transpor para o papel a nossa história com isenção, através dos seus escritos, seus contos, suas cronicas. 
   
    "O capítulo ONZE, do mesmo PENSÃO CACILDA, embora seja em forma de discurso por se tratar de uma ficção (calcada na realidade então descrita), no fundo é um ENSAIO robusto (perdõe a falta de modéstia) sobre toda a agitação sociopolítica e revolucionária ocorrida no mundo e, principalmente, no Brasil, que levaria à intervenção militar, decretando a Ditadura de 1964."

Boa leitura e comentem.

CAPÍTULO ONZE  [1]

- 1 -

FOI TERRÍVEL o burburinho no salão. A transudação, a fumaça dos cigarros, o próprio hálito das pessoas, de mistura a alguma incontida flatulência tornavam o ambiente fechado tão ensurdecedor quanto irrespirável. De tão cheio, mover-se ali era quase impossível. Foi com muita dificuldade que os dois amigos conseguiram se deslocar até a cantina, para tomarem um cafezinho. Para eles, não fumantes, respirar um ar um pouco mais puro foi suave refrigério. Ao retornarem, tomaram acento quase à frente da tribuna, e ficaram calados, vez que era impraticável levar avante qualquer conversação.

Após uma pausa que pareceu demasiado longa, fez-se presente o segundo orador da noite.

“Meus senhores!

“Boa noite!

De repente o silêncio se fez na sala superabafada. Iria usar da palavra o jovem vereador Barroso, eleito com uma boa bagagem de votos, deixando na poeira veteranos de muitos pleitos na edilidade teresinense. Um fenômeno, o cara. Viera do interior fazia poucos anos e já conseguira galgar posição de destaque.

“Depois da bela oratória de meu antecessor, quase nada me resta para dizer. Entretanto, como estou escalado para falar, vou tentar fazê-lo em tempo recorde e da melhor forma possível. Ele traçou nesta tribuna, em linhas gerais, o programa que nos propomos desenvolver, de forma ordeira e dentro da lei. 

“Penso que todos aqui, ou pelo menos a grande maioria, já ouviram falar de Materialismo Histórico, Luta de Classes, Socialismo, Comunismo, e mais próximo de nós, posto que estão pichados nas paredes e muros da cidade dísticos como Reformas de Base, Reforma Agrária, Ligas Camponesas. Gostaria de lhes repassar um resumo do que significa cada um desses sintagmas. Eles contêm, em si mesmos, significações que se encadeiam formando um todo harmônico que resultou na criação e implantação de um novo Sistema Econômico que destronou a primazia do Capitalismo nos aspectos econômico, político, social etc. A ideologia que defendemos já foi vitoriosa na União Soviética, na China, em alguns países europeus e recentemente em Cuba. Isso resultou na divisão do mundo em dois blocos antagônicos que ganharam força após o término da Segunda Guerra Mundial, gerando, inclusive, a chamada Guerra Fria, que é uma luta surda, e às vezes suja, pela supremacia bélica.

“No Brasil, a ideia da derrubada violenta do governo Dutra, conforme propunha o Manifesto de Agosto de 1950, foi substituída três anos depois por um projeto de programa mais flexível e moderado, numa aliança operário-camponesa, embora continuassem constantes da pauta os nove pontos elencados no primeiro documento, que são: 1) por um governo democrático popular; 2) pela paz e contra a guerra imperialista; 3) pela imediata libertação do Brasil do jugo imperialista; 4) pela entrega da terra a quem trabalha; 5) pelo desenvolvimento independente da economia nacional; 6) pelas liberdades democráticas para o povo; 7) pelo melhoramento das condições de vida das massas trabalhadoras; 8) pela instrução e cultura do povo; e 9) por um Exército Popular de Libertação Nacional.

“A luta, portanto, será travada nessas bases e com esses objetivos. Só recorreremos às armas em último caso.

“Esses temas demandariam muito tempo para discussão e aprofundamento. Além disso, em face do avançado da hora, pretendo apenas fazer o resumo histórico do que são as Ligas Camponesas, assunto que nos toca mais de perto. O fim precípuo de explicitação desse tema é trazer à consciência dos senhores a importância vital de nossa luta em face da precária situação em que vive atualmente o proletariado brasileiro e, especialmente, os trabalhadores do Piauí.

“Durante a fala do meu antecessor, pude perceber em muitos dos senhores certa desconfiança ou mesmo o verniz do medo, perceptíveis num leve balançar de cabeça, num sutil piscar de olhos, principalmente quando ouviam mencionar a palavra LUTA! Para sossegá-los a todos, quero lhes informar que a luta que hoje se opera no campo das ideias, será travada mais tarde no campo mais pragmático de uma disputa nas urnas, dentro, portanto, da mais absoluta legalidade. Para que isso seja possível precisamos tratar, urgentemente, da organização e fundação do Partido aqui no Piauí. Só dessa maneira nos será possível competir politicamente.

“Tendo em vista que meu antecessor – conforme já frisei - abordou apenas de forma geral certos aspectos da luta em que estamos envolvidos, desejaria desenvolvê-los um pouco mais, de maneira mais aprofundada”.

- Percebi um aspecto interessante na fala do nobre vereador – murmurou Bernardo a um Anselmo agora “todo ouvidos”. - Ele fala em primeira pessoa, dando a entender que sabe o que diz e que assume a responsabilidade por aquilo que fala. Outrossim, não utilizou a saudação “camaradas” em nenhum momento. Por que será?

- Vamos ouvi-lo que é melhor – devolveu o interlocutor, sem querer encompridar conversa.

“Como todos sabemos, o mundo vive atualmente sob o estigma de dois sistemas econômicos antagônicos: CAPITALISMO X COMUNISMO. Ou socialismo, se o quiserem.

“O Manifesto Comunista, escrito por Marx e Engels, foi publicado durante o segundo congresso da Liga dos Comunistas, realizado no final de 1847, em Londres. Abre o seu primeiro capítulo com a seguinte afirmação: A história de todas as sociedades que existem até hoje, é a história de lutas de classes. E continua, no segundo parágrafo, a explicitação do que sejam lutas de classes:

Homem livre e escravo, patrício e plebeu, barão e servo, mestres e companheiros, numa palavra, opressores e oprimidos, sempre estiveram em constante oposição uns aos outros, envolvidos numa luta ininterrupta, ora disfarçada, ora aberta, que terminou sempre ou com uma transformação revolucionária de toda a sociedade, ou com o declínio das classes em luta

 “Penso que esse axioma explica muito bem todo o significado de Lutas de Classes. É a partir dessa compreensão que Marx constrói toda uma teoria baseado no trinômio Tese X Antítese = Síntese que, enfim, vai  ensejar a transformação dialética da sociedade. A dialética, no entendimento de Hegel, pode ser resumida como sendo um processo que deve ser combatido ou uma tese a ser refutada, e que supõe, portanto, dois protagonistas ou duas teses em conflito. Aplicando-se isso à luta de classes, temos como tese: burguesia x proletariado. Da contradição dos interesses desses dois conflitos nasce a antítese; e na superação, a síntese.   

“Apliquemos esse postulado ao que vimos acontecer há pouco em Cuba. Qual seria a tese? O fato amplamente comprovado era a existência de um Estado semi-feudal e pró-imperialista, ou seja a exploração capitalista de grupos locais aliados a trustes poderosíssimos de empresas norte-americanas. A economia cubana baseava-se na exploração do criatório de gado e, sobremodo, da cana-de-açúcar. Dos 9,1 milhões de hectares, os latifúndios detinham  aproximadamente 70% das áreas próprias para essas atividades. A distribuição da terra ficava assim: 114 proprietários possuíam 20%; 62 mil camponeses detinham a posse de apenas 15%; enquanto 62,7% das propriedades eram exploradas por camponeses sem terra, sem nenhum direito sobre ela: eram os arrendatários e parceiros, que pagavam aos latifundiários rendas anuais escorchantes, sob as mais diferentes formas. [2]

“E o que seria a antítese? A luta desfechada pelos oprimidos contra essa classe dominante, constituída de falsos patriotas cujos “principais titulares juravam solenemente defender os interesses da pátria, mas se moviam unicamente em função de resguardar e manter o país como semi-colônia, um quase protetorado dos Estados Unidos".

         “A síntese, no caso cubano, foi a vitória da revolução de Fidel, fruto da renhida luta de classes empreendida por essa brava gente, que acabou com a espoliação imperialista na cobrança de elevados royaltys pelo uso de suas marcas e patentes, na exagerada taxação nas remessas de lucros de suas filiais cubanas para suas matrizes na América, na fixação dos preços do açúcar, do petróleo e de tantos outros produtos de que a nação ilheia necessitava.   

“Meus senhores!

“Para melhor evidenciar a importância das lutas de classes, registro, de forma sucinta, como a Igreja católica as entende, em sua doutrina social, lembrando que a grande maioria de seus membros duramente nos critica e nos combate. Inicia afirmando que a palavra tem origem nas cinco classes em que se dividiam os romanos, segundo a importância das suas riquezas e conforme sua categoria social. E define Classe Social como sendo:

Uma categoria social que agrupa um número considerável de indivíduos com semelhante posição econômica, com nível e gênero de vida similares e com uma concepção semelhante de vida.

 “Em seguida estabelece duas classes preponderantes: a Classe Operária como exemplo típico, resumindo sua condição e características: insegurança, escravidão ao salário, pobreza, ausência de vínculos pessoais e ausência de valorização intelectual do trabalho e inibição do espírito criador; e a Burguesia e Aristocracia, que se unem e contam com a força do número, sendo capaz de modificar a seu favor as estruturas sociais (...) com o apoio do dinheiro, da cultura ou da direção.

“E continua fazendo alusão à doutrina marxista, que acusa de simplesmente dividir as classes sociais em apenas dois grupos – proletários e burgueses -, enquanto ela, Igreja, fraciona a sociedade em três grandes classes, que são: 1) Classe trabalhadora (com seus subgrupos); 2) Classe Média; e 3) Burguesia e Aristocracia

“Para Marx não basta uma crise econômica para que aconteça uma revolução e se mudem as estruturas econômicas, políticas e sociais de um país ou nação. Defende, também, que sindicatos, agremiações, associações de classe e outras correlatas não devem lutar apenas por melhoria de salários e de condições de vida. Ademais o proletariado tem de lutar, posto que é de fundamental importância, pela criação de um partido democrático revolucionário, que tenha por finalidade educar os trabalhadores e levá-los a se organizarem para a tomada do poder por meio de uma revolução socialista. Em sua justificativa, alerta para o fato de estarem os trabalhadores submetidos à ideologia dominante que são as mesmas pessoas que se beneficiam dos frutos dessa cruel e desumana exploração. Seria um absurdo – conclui - que a humanidade inteira se dedique a trabalhar e produzir subordinada aos interesses de um punhado de grandes empresas.

         “Passo agora ao exame dos dois sistemas econômicos a que fiz referência no início de minha fala.

“O sistema capitalista tem por lema a livre empresa, a livre concorrência, a livre iniciativa. Determina as formas de trabalho, estabelece a remuneração, e age sempre observando a lei da oferta e da procura, que, em suma, regula o mercado e, naturalmente, os preços. Promete oportunidades iguais para todos, participação nos lucros, postos de direção para o operariado. São muito bonitas as proposições. Eu, entretanto, refuto tudo isso como letra morta porque dos lucros ao operário nada toca; quando raramente algum operário ascende a um posto de direção, passa, obrigatoriamente, a defender a causa patronal. Dessa forma, no final, só engordam os cofres do grupo econômico ou do cartel, formando não uma injusta pirâmide, mas um cruel obelisco social, gerando o que Darcy Ribeiro, chefe da Casa Civil do governo João Goulart, denominou “Clube dos Contemplados”, constituídos de 5% da população que ganha bem, vive bem, veste bem, come bem, educa bem seus filhos, monopoliza os empregos públicos, sonega impostos e absorve os recursos do crédito oficial.

“Para melhor evidenciar essa enorme desproporção na divisão do bolo dos bens que a sociedade produz, vou citar para os senhores alguns números estatísticos de dois ou três anos atrás:

- Em 80 milhões de brasileiros há 75 milhões que não integram o “Clube dos Contemplados” de que fala Darcy Ribeiro;

- Em 80 milhões de brasileiros 77 milhões não possuem terra e não têm interesse na manutenção da velha organização feudal dos campos;

- Em 80 milhões de brasileiros há 50 milhões de analfabetos, virtuais inimigos de um sistema que os reduziu à condição de sub-homens”. [3]

“Diante desses números, eu pergunto: Por que não organizamos logo o partido para que possamos promover, sem demora, a Revolução?”

“Conforme enunciei há pouco, citando Marx e a própria Igreja católica na sua doutrina social, o capitalismo tem escravizado o homem desde as mais priscas eras, visto que a humanidade tem vivido sob o estigma do maldito binômio Capital e Trabalho. Ainda sob Abraão já a escravidão era praticada. Seus descendentes foram escravos de Faraó, no Egito antigo. Os gregos, considerados “pais da democracia”, submetiam seres humanos a essa abjeta condição social, dando sustento a uma casta de ociosos para disporem de tempo para “pensar”. Eram os mecenas de filósofos e outros vagabundos que não trabalhavam. Assim também foi em Roma, no feudalismo da Idade Média, posteriormente nos Estados Unidos e depois... no Brasil!

“Senhor Deus dos desgraçados,

Dizei-me Vós, senhor Deus,

Se é mentira ou se é verdade

Tanto horror perante os céus!”

. . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . .

Chora, Musa, chora e chora tanto,

Que o pavilhão se lave no teu pranto!”


“Meus senhores!

“Isso é o brado de Castro Alves contra a escravidão, ainda no século passado. Desde 1888 vêm propalando os nossos governantes que essa verdadeira chaga social foi extinta naquele ano pela princesa Isabel. Extinta que nada! Pura ilusão! Os senhores de escravos continuaram com seus latifúndios e com novos escravos, agora com uma disfarçada coleira de ferro no pescoço dos seus meeiros, arrendatários, foreiros e agregados. Aos dois primeiros cobram uma terça parte ou mesmo metade da produção; ao foreiro, uma taxa chamada foro, que de forma alguma é razoável. Aos últimos, tascam-lhes o cambão ou corveia, que é o trabalho gratuito três dias por semana, resquício do feudalismo que chegou até os tempos atuais. E pela meia semana de trabalho remuneram com uma miséria que anda longe de alcançar metade do mínimo.  

“Conforme já frisei, o capitalismo tem escravizado o homem, tornando-o alienado. Tem-lhe negado tudo a que tem direito: moradia, justa remuneração, saúde, instrução, bem-estar social, lazer. Todos aqui conhecemos bem a triste história dos teares ingleses, de suas fábricas, das 15 horas diárias trabalhadas, da parca remuneração, do insalubre ambiente de trabalho e, inclusive, da cruel exploração do trabalho infantil, sob regime de escravidão. Em toda a história do capitalismo, principalmente após robustecido pelos fabulosos lucros obtidos com a Revolução Industrial, repete-se a velha história da exploração do homem pelo homem. Eu reafirmo, sem nenhum sobrosso, que a escravidão persiste, que o operário tornou-se apenas um número estatístico, sem rosto ou aparência humana, um verme esmagado sob o tacão das botas dos poderosos”.

Os dois amigos estavam silenciosos. Bernardo, sempre atento, imerso em pensamentos; Anselmo parecia em êxtase. Na tribuna o discursista parecia não querer encerrar o palavrório:

“E sobre o outro sistema? talvez esteja alguém a se perguntar. O outro sistema é muito mais justo e humano, seja chamado comunismo, marxismo, socialismo ou da forma que desejarem os reacionários. Nele não encontramos a terra em mãos de uns poucos. Não encontramos léguas e mais léguas de boas terras totalmente inexploradas, servindo apenas para especulação. Nelas ninguém pode pôr o pé, plantar um grão de nada simplesmente porque pertencem ao coronel Fulano de tal, ao major Beltrano, ao doutor Sicrano.

“A propósito, vou narrar-lhes um episódio interessante ocorrido com um desses coronéis latifundiários daqui mesmo do Piauí. O referido coronel fazia-se transportar na sua rural Willis, o carrão do momento, quando, de repente, depara-se com um carneiro muito bonito, luzidio de gordo, à margem da estrada. Diante de tão belo exemplar ovino, determina parada ao motorista. Desce do carro, rodeia o belo animal e, embevecido, indaga do caboclo recostado à cerca:

- De quem é esta fazenda?

- É do doutor coronel Dedé Gonçalves, nhô sim.

- Pega esse carneiro e ponha-o na traseira da camioneta – ordena, arrogante.

Como o caboclo vacilasse, ele esclarece:

- Então não me conhece, caboclo? Eu sou o coronel Dedé Gonçalves, seu patrão!

“Vejam, pois, senhores, a quanto chegam as terras daquele senhor. Ele, inclusive, desconhece certos domínios seus. Isso jamais aconteceria se tivéssemos aqui o regime econômico que propomos, porque seria equananimamente redistribuída. Nele o operário trabalha e o que o seu trabalho produz em remuneração é muito mais do que aquilo que foi gasto em todo o processo de produção: insumos, matérias-primas, salários, energia elétrica etc. O excedente disto é o lucro ou a “mais-valia”.[4] No capitalismo o lucro vai, conforme já expliquei, para os cofres do patrão, da empresa ou do monopólio. No comunismo, será o lucro distribuído proporcional e equitativamente entre as pessoas envolvidas na produção, reservando-se uma mínima parte para novos investimentos”.

- Este é que é o sistema justo – gritou um exaltado, da plateia.

Palmas! Palmas! Palmas!

 “Meus senhores!

“Os reacionários apregoam que desejar regular a remessa de lucros para o exterior, que hoje é praticada de forma escorchante, é ser comunista. Que defender uma melhor divisão da terra é fazer comunismo. Que lutar em sindicatos e associações por melhores salários e tentar mudar esse status quo é pretender implantar no Brasil o regime de Cuba, da China ou a União Soviética. Essa pecha maldita inculcada na mente, não apenas das pessoas mais simples como daquelas ditas ‘bem informadas’, pela massiva propaganda reacionária nos meios de comunicação – rádios, jornais, revistas, televisão (esta não chega ainda até nós), os sindicatos urbanos, as ligas camponesas, os grêmios estudantis, as associações de bairro, o movimento de educação de base desenvolvido por membros da Igreja vanguardista – são todos subversivos e comunistas a soldo da Internacional Socialista, pois juram de pés juntos que nisso tudo  está o dedo vermelho da URSS e o braço amarelo da China de Mao.

“A satanização do comunismo é tão grande, que não têm vergonha de propagar que os comunistas querem acabar com a família e a educação; querem socializar as mulheres e acabar com toda a propriedade privada. Nessa desvairada demonização, chegam ao cúmulo de propalar aos quatro ventos que “comunista come criancinha”.

“Quanta estupidez, senhores! Lembrem-se de que também os judeus já foram vítimas dessas línguas viperinas, pois afirmavam: “Judeu bebe sangue de crianças inocentes” De onde provinham (e provém) essas celeradas vozes?

“Socializar as mulheres é uma das acusações. Segundo esses propagandistas de má fé, no comunismo as mulheres se tornariam objeto a ser usado por todos, uma vez que a sua filosofia prega que tudo é comum a todos. Pode haver coisa mais ridícula, senão absurda?

“Em face dessa distorcida concepção, criada e disseminada pela ortodoxia dominante, do ideal revolucionário, qualquer pessoa que demonstre simpatia pela causa, por palavras, gestos ou atitudes, é tachada de subversiva e comunista e ficará marcada em dossiês secretos mantidos pelos Departamentos ou Delegacias de Ordem Política e Social país afora. E disso ninguém escapa porque os “dedos duros” e alcaguetes estão nas escolas e faculdades, nas associações e, quem sabe, até aqui entre nós. Ainda a  propósito desse desvirtuamento do que seja o regime comunista, que se disseminou pela população de modo geral, narra-nos Josué de Castro, em seu esplêndido livro Sete Palmos de Terra e Um Caixão, uma conversa ocorrida entre um coronel latifundiário e um seu morador:

- Seu coronel, o que é mesmo esse tal de comunismo?

- Comunismo é um regime que toma tudo o que é dos outros, que faz mal às filhas dos outros e que empata a religião dos outros – respondeu seguro de si o coronel.

- Mas se é assim, seu coronel, já estamos neste regime – responde ainda mais seguro o camponês.

“Vejam, senhores, o quanto a contrapropaganda deles é eficiente! Também pudera! Dispõem de verdadeiro rolo-compressor: jornais, revistas, rádio, televisão, a ala da Igreja conservadora e todo o peso da máquina estatal amedrontando seus servidores com remoções, transferências, cortes de gratificações, demissões... o diabo! 

“Mas mudando um pouco o enfoque de minha conversa, desejo, nesta oportunidade, me dirigir a vocês, bravos estudantes mal-orientados. Mal orientados, sim, porque lhes faltam bons professores, professores que discutam currículos, que interajam com a clientela estudantil. Que respeitem os saberes das comunidades periféricas numa espécie de diálogo em que a troca de experiências se realize e que resulte em um processo integral de aprendizagem desses saberes e valores. Devemos, pois, meus senhores - estudantes, operários, camponeses, funcionários públicos, todos, enfim - tentarmos reescrever uma nova história em substituição àquela história que a ideologia dos poderosos mandou e manda escrever!”

Enquanto a massa aplaudia, os dois amigos trocavam impressões.

- E agora, o que me diz?

- Bem melhor que o primeiro orador, que fez apenas um discurso ramalhudo.

- Que diabo você quer dizer com isso?

- Discurso ramalhudo é aquele que contém muitas palavras sonoras e frases empoladas, mas poucas ideias.

- Ah! – fez Anselmo, sem dar a entender se concordava ter sido assim o discurso do orador precedente ou se apenas captara a explicação. E continuou:

- E quanto ao Barroso, que está discursando agora?

- Bom, “desenrolado”. Muito bem-posta a abordagem que acabou de fazer à pedagogia de Paulo Freire.

- Quem diabo é esse Paulo Freire? E em que consiste essa tal pedagogia?

Bernardo não se negou a esclarecer, resumidamente, quem era Paulo Freire e em que consistiam os novos métodos de ensino que desejava implantar na educação brasileira.

- Você bem sabe que meu trabalho tem estreita relação com a Inspetoria Seccional do Ensino Secundário, órgão federal ligado ao MEC, que cuida da Educação em nosso estado. Paulo Freire é um pedagogo pernambucano que vem criando métodos novos e escrevendo teses sobre educação. Esse futuroso educador, além de defender uma educação dialógica, protesta veementemente contra o que chama “Peias da ideologia dominante”, que (sic) imobiliza e exclui milhões de seres humanos, nos campos e periferias das pequenas, médias e grandes cidades, dos bens que a sociedade produz, reduzindo-os a simples números estatísticos.

- Eu não disse que o Barroso era bom! Conhece até esse Paulo Freire.

- Sim, acho que o cara deve ter lido alguma coisa sobre ele, que é tido e havido como um “provocador cultural”. Sim, é também comunista declarado.

- Lá vem você com seu tolo preconceito.

Enquanto Anselmo protestava contra essa “injusta” avaliação, o orador prosseguia:

“Meus senhores!”

“Feito esse reparo, e tendo em vista que esta é apenas uma palestra e não uma discussão acadêmico-filosófica, passarei ao breve resumo do que são as Ligas Camponesas. E nesse caso, vou dar uma de Doctus cum libro, ou seja, “dar uma de sábio com o livro alheio”, usando como paradigma a belíssima obra de Josué de Castro, já aqui referida – Sete Palmos de Terra e um Caixão.

“Ele intitula o primeiro capítulo como A REIVINDICAÇÃO DOS MORTOS, fazendo questão de citar, como chamada, os seguintes versos de João Cabral de Melo Neto: Nenhum dos mortos daqui vem vestido de caixão. Portanto eles não se enterram; são derramados no chão.

“A reivindicação dos mortos de que fala Josué de Castro é isto: o direito de não descer os sete palmos recebendo terra na cara”.

E explicita, empunhando um exemplar do livro, que mostra ao auditório, passando a ler um trecho:

E por que este desespero em possuir um caixão próprio para ser enterrado, quando em vida esses deserdados da sorte nunca foram proprietários de nada – nem de terra, nem de casa, nem mesmo do seu próprio corpo e de sua própria alma, alugados a vida inteira aos senhores da terra?” - indaga o Autor e ele mesmo responde: Tudo isso só tem sentido quando a gente compreende que, para os camponeses do Nordeste, a morte é o que conta; e não a vida, desde que, praticamente, a vida não lhes pertence. Dela eles nada tiram, além do sofrimento, do trabalho esfalfante e da eterna incerteza do amanhã: da ameaça constante da seca, da polícia, da fome e da doença.

“E continua, mais à frente, o eminente sociólogo da fome:

Daí o interesse do camponês do Nordeste pelo cerimonial da morte, que ele encara como o dia de sua libertação à opressão e ao sofrimento da vida. No seu entender simplista, seria necessário se apresentarem com um mínimo de decência, numa hora de tanta solenidade – a hora do Juízo Final!

“Quão belas palavras, senhores!

“Pelo fato de não saber expressá-las tão bem, apropriei-me do texto alheio, não com a consciência do roubo ou mesmo do plágio, mas como um eloquente elogio a este grande nordestino que tanto batalhou pela melhoria das condições de vida da gente do campo. E mais que um elogio a quem as escreveu, é também o meu brado de revolta e de solidariedade àqueles a quem foram destinadas – os camponeses! Àqueles cujos versos de João Cabral vêm soberbamente confirmar o seu destino infeliz:

                  Esta cova em que estás

                  Com palmos medida

                  É a conta menor

                 Que tiraste em vida.

                 É de bom tamanho

                 Nem largo nem fundo

                 É a parte que ter cabe

                 Neste latifúndio.
 
                É uma cova grande

                Pra teu pouco defunto

               Mas estarás mais ancho

               Que estavas no mundo

 Após esse recital, toda a plateia postou-se em referente silêncio. Era como se todos estivessem orando por aqueles infelizes... Tempo depois, o orador pigarreou e, novamente, tomou a palavra, ainda com laivos de emoção na voz. 

“A primeira Liga Camponesa foi fundada em 1955, por João Firmino, morador do Engenho Galileia, em Pernambuco, e não o fez pensando em defender melhores salários, mas para reivindicar o direito dos mortos de dispor de sete palmos de terra e um caixão, evitando que os corpos dos miseráveis trabalhadores da bagaceira fossem levados para o cemitério num “caixão de caridade”. [5] Portanto o objetivo inicial era de uma sociedade civil beneficente, de auxílio mútuo. Ainda conforme Josué de Castro, o fito era

 ... o de ajudar os moradores a morrer com decência, uma vela na mão, os olhos fitos na chama desta vela, que os ajudaria a orientar seus primeiros passos na escuridão do além, e com a confortadora certeza de que dispunham dos seus sete palmos de terra onde pousar o seu caixão e nele esperar tranquilos o juízo final.

 “Tanto era certo que essa primeira liga não tinha nenhum viés político ou mesmo reivindicatório, que o dono do engenho foi convidado a ser o seu presidente de honra, o que foi aceito. Somente depois, quando outros donos de engenhos começaram a abrir-lhe os olhos para o perigo de aceitar a “honraria” da presidência de uma entidade que poderia lhe causar grandes transtornos no futuro, foi que as Ligas tomaram o viés político com a entrada em cena do advogado Francisco Julião, então deputado estadual por Pernambuco.

“Mas, senhores”

“A propósito ainda de demonização do comunismo e por achar que o que lhes tenho a dizer em seguida guarda muita semelhança com a situação dos nossos espoliados cidadãos – proletários urbanos e camponeses – peço que me permitam avocar George Orwell, que escreveu em 1945, um livro denominado A Revolução dos Bichos, logo após o término da Segunda Guerra Mundial. Seu texto, dizem os editores na orelha do livro, foi imediatamente percebido como uma sátira feroz da ditadura stalinista. Escrito como fábula, naturalmente as ações eram desenvolvidas pelos bichos, em um regime totalitário. A analogia, continuam os editores, era escancarada, pois referia-se aos expurgos, exílios e assassinatos que estavam ocorrendo na União Soviética. E perguntam ainda: Como não identificar Stálin no despótico Napoleão e Trotsky no proscrito Bola-de-Neve? Bem, identificar a Granja como sendo o Kremlin também não era difícil. O livro se inicia com um discurso do Sr. Jones, um porco com estrelas de major, então o premier da Granja, perante os “camaradas” reunidos no celeiro: Camaradas, (...) Sei que não estarei convosco por muito mais tempo, e antes de morrer considero uma obrigação transmitir-vos o que aprendi sobre o mundo.

“E vai o major Porco desfilando uma série de experiências colhidas ao longo de sua vida porcina até a seguinte tirada filosófico-materialista:

O Homem é a única criatura que consome sem produzir. Não dá leite, não põe ovos, é fraco demais para puxar o arado, não corre o que dê para pegar uma lebre. Mesmo assim é o senhor de todos os animais. Põe-nos a mourejar, dá-nos de volta o mínimo para evitar a inanição e fica com o restante. Nosso trabalho amanha o solo, nosso estrume o fertiliza, e no entanto nenhum de nós possui mais que a própria pele.

“E prossegue enumerando os bens que cada animal produz: os litros de leite das vacas, as crias; as dúzias de ovos e os pintinhos das galinhas; os potrinhos dos cavalos e assim por diante, até desaguar numa conclusão-proposta que é a seguinte:

Não está, pois, claro como água, camaradas, que todos os males da nossa existência têm origem na tirania dos humanos? Basta que nos livremos do Homem para que o produto de nosso trabalho seja só nosso. Praticamente, da noite para o dia, poderíamos nos tornar ricos e livres. Que fazer, então?

         “A obra do indiano que estudou na Inglaterra” – continua o orador –, “ serviu o exército britânico na Birmânia e lutou como voluntário na guerra civil espanhola, pretendeu realmente satanizar o regime comunista e debochar dos seus dirigentes. Houve expurgos, exílios e assassinatos na Rússia? O trabalho nas fazendas coletivizadas era cruel e desumano? Possivelmente – sim! Mas não encontrarão os senhores muita semelhança no regime capitalista? O que dizer dos seus espoliados trabalhadores? E o grande irmão do Norte, com sua famigerada doutrina América para os americanos, não personificará também esse sanguessuga de que falava o major Jones, o porco-chefe da Granja que, ao final de sua alocução, indaga: Que fazer, então?

         “Senhores, eu lhes faço a mesma pergunta: Que fazermos, então?”

         Antes que público pudesse dar uma resposta, uma potente voz atroou no recinto:

         - Os “tiras” estão chegando, camaradas. Fujam todos, depressa!

Os berros eram de um dos olheiros que a Célula costumava colocar de atalaia na desembocadura das ruas que iam dar na Praça Rio Branco e, consequentemente, no prédio em que se faziam as reuniões do incipiente PCdoB.

Ainda bem que no prédio havia um largo portão fronteiro à Praça da Bandeira, além de janelas e duas portas laterais, dando uma para o Hotel Piauí e a outra, para a Igreja de N.S. do Amparo, situação que, em caso de emergência, ensejaria rápida evacuação.

A debandada foi geral.

Bernardo, que se encontrava junto à porta do lado do Hotel Piauí, por ela se precipitou feito uma bala. Escondendo-se atrás de jarros de planta e de carros estacionados ao redor do hotel, meteu-se pela Rua Areolino de Abreu, conseguindo escafeder-se ajudado pela fraca iluminação fornecida pela Usina de Força e Luz da Lucaia, ainda movida a lenha.
Quando os milicos chegaram, a Célula era a coisa mais limpa.





[1] Por questão pedagógica, achamos por bem dividir o capítulo DEZ em dois, ficando o ONZE apenas com o discurso do segundo orador da noite. Pensamos que dessa forma facilitamos a leitura dos dois capítulos, tornando-os mais palatáveis. (Nota do Autor)


[2][ Dados colhidos in CUBA: A Revolução na América, de Almir Matos, Vitória, Rio de Janeiro-GB, 1961.


[3]  Dados colhidos do livro Brasil – Guerra-Quente na América Latina, de Maia Neto, Civilização Brasileira, 1965.


[4] A mais-valia é constatada pela diferença entre o preço pelo qual o empresário compra a força de trabalho (6, 8, 10, 12 horas diárias ou mais) e o preço pelo qual ele vende o resultado ou produto. Desse modo, quanto menor o preço pago ao operário e quanto maior a jornada de trabalho, maior o lucro empresarial (Vikipédia)
[5] Caixão de caridade era um caixão que muitas prefeituras do interior do Nordeste punham a disposição da família do defunto para que nele fosse levado ao cemitério. Em lá chegando, o “de cujus”, era despejado na cova, levando areia na cara. (Nota do Autor)


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