sábado, 20 de julho de 2019

A CULTURA DE UM POVO


        As manifestações culturais na cidade de Francisco Santos

Neste capítulo iremos nos dedicar em fazer um estudo sobre as manifestações culturais populares na cidade de Francisco Santos, onde analisaremos como a cultura popular se manifestava no cotidiano do povo franciscossantense. No âmbito dessas manifestações destacaremos o Lindô, o Drama, o Reisado e o Pastoril também denominado de Lapinha.
Não podemos falar em práticas cotidianas na cidade de Francisco Santos, sem destacarmos as manifestações culturais populares que eram presentes no dia a dia do povo franciscossantense. Embora a literatura local não nos ofereça embasamento para trabalharmos com essas práticas culturais, apontaremos aqui, tendo como base apenas os relatos de nossas fontes orais, os aspectos e manifestações culturais populares na cidade de Francisco Santos. Nas décadas de 1960 e 1970 existiam várias práticas e manifestações culturais que os moradores ainda hoje lembram. Neste sentido, cabe aqui um questionamento, por que às manifestações culturais populares são tão presentes na memória dos habitantes da cidade e os literatos não oferecerem em suas produções informações sobre a cultura popular local?
Para termos uma maior compreensão sobre as manifestações culturais faz-se necessário no início deste capítulo trazermos algumas considerações sobre o que é cultura popular, para posteriormente analisarmos as manifestações culturais populares em Francisco Santos e compreendermos como a cultura popular se manifestava na sociedade franciscossantense.
Maria Cecília Silva de Almeida Nunes entende por cultura popular:

[...] O fazer, o saber e o sentir do povo simples, que na sua cotidianidade, vem por meio da fala, dos gestos, das atitudes, dos hábitos e costumes, manifestando seus valores materiais e espirituais, herdados dos antepassados e preservados pelos grupos que vão se reproduzindo, incentivando a manter vivas suas memórias e suas histórias. (NUNES, 2003, p. 87).

Com base nessa definição, a cultura popular pode ser entendida como manifestações de valores, sejam eles materiais ou espirituais, dessa forma as danças, comidas, objetos, literatura popular, festas religiosas, modo de falar e se comportar podem ser caracterizados como sendo elementos inerentes à cultura popular.
A cultura popular agrega elementos que os indivíduos partilham entre si enquanto pertencentes de um mesmo grupo. Isso implica dizer que aquilo que pode ser entendido como cultura popular ou patrimônio cultural para um determinado grupo, para outro pode não ser. Dessa forma a cultura popular é uma expressão que caracteriza elementos culturais particulares de uma região ou sociedade. As manifestações e os costumes populares, por serem algo inventados, estão sujeitos a transformações e adaptações. Segundo Erick Hobsbawm (1984) às vezes dentro da cultura popular há a necessidade de conservar velhos costumes em condições novas ou usar velhos modelos para novos fins.
A cultura popular é riquíssima e vasta quando se trata de festas religiosas, danças e literatura popular. É dentro desses aspectos que analisaremos as práticas culturais na cidade de Francisco Santos nas décadas de 1960 e 1970.

3.1. As apresentações de Lindô e os Dramas

As apresentações de Lindô constituíam-se como uma manifestação cultural popular costumeiramente realizada em Francisco Santos nas décadas de 1960 e 1970. Prática cultural esta que atualmente deixou de ser realizada pelos franciscossantenses.
A pesquisadora Ana Clara Santos Sousa (2014), em sua monografia defendida no ano de 2014, destaca que o lindô, segundo relatos orais, teria começado a ser praticado no antigo povoado Jenipapeiro, por volta do ano de 1884, tendo os negros como realizadores dessa dança:

No ano de 1884, no povoado Jenipapeiro havia poucos habitantes, nenhum lazer, os negros que eram em números significativos juntaram-se em uma roda com mais ou menos 30 pessoas e criavam canções de acordo com as situações e os acontecimentos da época, dançavam nos terreiros aos sábados e festividades. O lindô foi se espalhando, e tornou-se uma dança popular. (SOUSA, 2014, p. 20).

Podemos perceber que o Lindô surge em um contexto de poucas opções de lazer, onde os negros reuniam-se em pequenos grupos para momentos de sociabilidade e diversão. O lindô tornou-se dança popular em Francisco Santos e assim como tantas outras manifestações culturais foi passando de geração a geração, consolidando-se como umas das principais práticas culturais populares nos anos de 1960 e 1970.
Segundo nossas fontes orais, o Lindô era uma dança de terreiro, onde seus praticantes usavam roupas longas e coloridas. De acordo com o relato da senhora Carleusa Santos (2017), o lindô “era uma dança de roda, de terreiro, onde o cavalheiro vai com a dama, tem um que vai cantando os versos, os outros vão respondendo e vem à dança de roda”.
A depoente Rosa Isaura Santos (2017) descreve que a execução do Lindô se dava da seguinte forma: em uma roda todos cantavam juntos o seguinte refrão:

Ô lindô, lindô, lindô.
Ô lindô, lindô, lindá.
Ô lindô, lindô, lindô.
Lindô, lindô, lindô, lindá.

Depois saía alguém da roda dançando e cantando:

Ô meu café. Meu café,
Meu café tá fulorando.
O velho está na cozinha.
E eu na sala semeando.

Em cima daquela pedra.
Tem uma pendra a amolar.
Ela amola, desamola.
Coisa boa é namorar.

Ô meu café. Meu café,
Meu café tá fulorando.
O velho está na cozinha.
E eu na sala semeando.

Podemos notar que as apresentações de Lindô era uma manifestação cultural caracterizada pelas danças de terreiros e cantigas de roda. Notamos que os versinhos e as rimas eram elementos presentes na execução das apresentações.
O Lindô era uma prática cultural que os habitantes de Francisco Santos praticavam bastante nessas décadas e que perdurou até meados dos anos de 1970. Ainda segundo nossas fontes orais o Lindô era cantado por uma pessoa que estava na roda, e as outras respondiam todas juntas:
Uma pessoa:
Lá vem a lua saindo,
Levante meu bem vem ver,
Não é lua, é só nosso bem querer.

Todos:
Ô lindô, lindô, lindô.
Ô lindô, lindô, lindá.
Ô lindô, lindô, lindô.
Lindô, lindô, lindô, lindá.

Uma pessoa:
Jogue o lenço pra cima
Caiu na água de limão,
Se eu não casar com você
Mas caso com seu irmão.

Todos:
Ô lindô, lindô, lindô.
Ô lindô, lindô, lindá.
Ô lindô, lindô, lindô.
Lindô, lindô, lindô, lindá.

Nas décadas de 1960 e 1970 o Drama era uma prática cultural que estava associada à cultura popular do povo de Francisco Santos. As apresentações dos dramas além de fazer parte da cultura local, também se configuravam como um entretenimento para os jovens e a sociedade como um todo. Vejamos o depoimento da senhora Rosa Isaura Santos:

Um divertimento grande aqui, era a juventude apresentar uns dramas, era uma atividade cultural aqui, fazia nas casas no começo e prolongou até os anos 70. [...] Drama é como é que a gente diz? Uma mistura de poesia e de canto, uma coisa assim mais fictícia, uma coisa meio dramática, e ai antigamente era nas casas, depois a gente fez muito ali dentro do mercado, “vixi”, eu ainda me trajei de homem, cantando essas coisas do drama. (SANTOS, 2017).

Como podemos notar nos relatos das nossas fontes orais, os Dramas eram realizados inicialmente nas casas de famílias e posteriormente no mercado público. As apresentações dos Dramas mesclavam encenações e músicas. Essa manifestação cultural era uma encenação com temáticas diversas criadas pelos próprios praticantes. Os jovens que realizavam as apresentações se caracterizavam, interpretavam e cantavam, e as cantigas cantadas eram repassadas de geração a geração.
Márcio Pontes (2011) caracteriza o drama como sendo uma prática que combina representação dramática, indumentária e expressão corporal. O autor entende o drama como sendo uma mistura de música – cantada pelas dramistas e acompanhadas por tocadores. 
Nossas fontes orais relatam que o drama era bem animado, tinha um sanfoneiro que acompanhava as apresentações tocando as canções, e os jovens que encenavam caracterizavam-se de acordo com os temas das músicas.
Vejamos o relato da senhora Lenite Maria da Rocha Sales:
Juntava uma turma de menina fazia uma parte, num assunto, juntava outra turma, fazia outra parte em outro assunto, e assim por diante. [...] tinha a cigana, tinham as praias, com os nomes das praias, cada qual cantava:
                         Todas reunidas
Bailando assim.
Ficaram belas e bem floridas,
Numa alegria sem fim.
Tinha a cigana também:
                         Uma pessoa: Ó cigana bela filha do deserto,
Que bem sabe distinguir a lei do fado,              
  Ler aqui em minha mão a minha sina,
  Par ver se sou feliz ou mal fadado.
Cigana: Nesta sina de tua mão ó belo moço.
 Do futuro eu não vejo nada não.
 Mais em teu olhar, no rosto em tua voz.
 Eu vejo amor que te consome o coração.
 Ah uma jovem que ti viu nessas paragens
 Sem querer fez despertar, louca paixão. (SALES, 2017).

A partir das nossas fontes orais podemos notar uma característica comum ao Lindô e ao drama, ambas as manifestações culturais são marcadas pelo canto e pela recitação de versinhos cantados individualmente ou em grupo.


3.2. A lapinha ou Pastoril


A fotografia acima (figura 02) diz respeito à Lapinha, também chamada de Pastoril. Esta manifestação cultural fortemente ligada ao aspecto religioso era costumeiramente praticada na cidade de Francisco Santos nos anos de 1960 e 1970, e perdurou até a década de 1980, hoje está praticamente extinta.
O Pastoril se caracterizava pela adoração ao Menino Jesus. Podemos notar na fotografia um pequeno aglomerado de pessoas em torno de um presépio. Era assim que se constituía a Lapinha. Esta era realizada na praça pública em frente à Igreja Matriz ou nas casas das famílias onde se tinham um presépio montado.
As apresentações de Pastoril eram realizadas no período que se estendia da noite de Natal até o dia cinco de janeiro. No dia seis de janeiro, encerrando as atividades das apresentações o grupo que havia cantado e se apresentado, faziam um ritual de queima das palhas de cada presépio onde tinham sido realizadas as apresentações.
Sobre a realização do Pastoril, Rosa Isaura Santos nos relatou em depoimento que:
Aí a gente cantava da noite de Natal até dia 6 de janeiro, que o dia de Reis, ai o dia de Reis, que é quando a gente tirava a Lapinha. Aí fazia a casinha da Lapinha nesse tempo era de palha, depois foi modernizando, mais nessa época era as casinhas pequenininha de palha. A gente fazia pequena e botava o presépio todo ali, menino Deus, Nossa Senhora, camelo, o galo, jumentinho, ovelha. (SANTOS, 2017).

É perceptível que as apresentações do Pastoril também eram baseadas na execução de cantigas. Nossas fontes orais destacam que durante todo o período em que o presépio ficava armado, um grupo de garotas, chamada de pastorinhas/camponesas cantavam em frente ao presépio. As pastorinhas, de acordo com Carleusa Santos (2017), se posicionavam em filas, vestidas com roupas típicas, com suas cestinhas e maracás nas mãos, e louvavam ao Menino Jesus:
Camponesas:
Eu entro já na lapinha
Pois não me posso conter
Esta tua formosura
Enche de gosto e prazer. (bis)

Recepcionistas:
Senhores e senhoras
Que querei vós?
O infante é nascido
Isto é cá para nós
Não é lá para vós
Isto é cá para nós.

1ᵒ par de Camponesas:
Vinde já meus Deus-menino
Nasce em meu coração
Tomai dele inteira sorte
Tomai nas vossas mãos. (bis)

2º par de Camponesas:
Vinde, meu rico infante
Vinde, não vos detenhais
A minha alma vos espera
Já não posso esperar mais. (bis)


3º par de Camponesas
Do varão nasceu a vara
Da vara nasceu a flor
E da flor nasceu Maria
De Maria o redentor. (bis)

Camponesas:
Soube que tinha nascido
Corri vim ofertar
Minha alma, minha vida.
Meu coração para amar (bis)
Alvíssaras, meu bem, alvíssaras.
Alvíssaras, que eu já cheguei.
Para ver, o Deus Menino.
Agora descansarei. (bis)

O Pastoril por ser uma manifestação associada à religiosidade do povo de Francisco Santos reunia bastante espectadores, haja vista que o franciscossantense participava assiduamente das atividades religiosas como foi retratado no capítulo anterior.
O ápice dessa manifestação era o seu encerramento das apresentações, que era realizado no dia 6 de janeiro, quando se comemorava o dia de Reis. É interessante pontuarmos que havia uma espécie de ritual e tradição. De acordo com Rosa Isaura Santos, só podia queimar as palhas aquelas mesmas pessoas que haviam cantado: “Aí a gente pegava aquelas palhinhas, colocava lá na frente lá da casa, no chão, aí botava ali e tocava fogo, aí a mesma equipe que tinha cantado a lapinha, aí, ia fazer a queima das palhas”. (SANTOS, 2017).
No momento em que se queimavam as palhas as pastorinhas cantavam:
Essas palinhas.
Que vão se queimar.
É da nossa lapinha
Que vai se acabar.
Adeus minha lapinha.
Adeus são José.
Até para o ano.
Se Deus quiser.

Essas palinhas.
Que vão se queimando.
É da nossa lapinha.
Que está se acabando.
Adeus minha lapinha.
Adeus, adeus, adeus.
Até pra o ano.
Com favor de Deus.

Essas palinhas.
Que já se queimou.
É da nossa lapinha.
Que já se acabou.
Adeus minha lapinha.
Adeus meu amor.
Até para o ano.
Se nós, viva for.
Assim terminava o Pastoril, com a realização do ritual de queima das palhas que haviam sido usadas durante o período em que se faziam a adoração ao Menino Jesus. Tal manifestação ainda hoje é recordada por quem participou ou assistiu as apresentações.

3.3. O Reisado como manifestação cultural popular em Francisco Santos

O Reisado, também denominado de “Folia de Reis”, “Reis”, “Santos Reis” é uma manifestação cultural caracterizada pela mesclagem de rezas com danças. É uma apresentação de dança que contém várias figuras e personagens.  O grupo que apresenta o Reisado visita as residências das famílias no período que vai do dia 25 de dezembro ao dia 6 de janeiro. Nessas visitações às casas, os devotos fazem uma espécie de ritual, abençoando a casa com cânticos sagrados e o dono da casa oferta dinheiro para realização da festa de Reis.
Sobre a realização das apresentações do Reisado na cidade de Francisco Santos podemos pontuar que era uma prática realizada frequentemente todos os anos nas décadas de 1960 e 1970.
O que nos instigou a realizarmos esse estudo, não apenas sobre o Reisado mais também das outras manifestações culturais populares, foi o fato de não ter nem um documento, ou fonte escrita que nos fornecesse informações sobre tais eventos. Por que todas as fontes orais recordam muito bem as manifestações culturais e não há nenhuma outra fonte, além da oral, que comprove tais manifestações? Dentro dessa perspectiva analisaremos o Reisado apenas a partir da memória e relatos orais dos sujeitos históricos.
Não sabemos ao certo a data em que o Reisado chegou à cidade de Francisco Santos, pois não temos conhecimento de qualquer fonte escrita que possa comprovar isso. Nossas fontes orais apontam que o Reisado foi trazido pelos primeiros povoadores que colonizaram as terras do antigo Povoado Jenipapeiro. As apresentações de Reisados além de estarem ligadas as manifestações culturais populares, também representavam um momento de lazer e sociabilidade, pois nos terreiros das casas, familiares e vizinhos se reuniam para dançar, sendo assim o Reisado não deixava de ser uma forma de entretenimento.
As apresentações do Reisado estavam ligadas as apresentações do Pastoril. O Reisado se iniciava na noite de natal, e se prolongava até o dia 6 de janeiro, data em que se queimavam as palhas da Lapinha e dia em que comemoramos dia de Reis.
Sobre o Reisado em Francisco Santos Rosa Isaura Santos nos relatou em depoimento que:
O Reisado era bom naquele tempo, menino, tinha a burrinha, e tinha o boi, e tinha o lobisomem, e tinha a ema, e a velha do chapéu de fogo, meu Deus mais era bom, era tirado muito era nas serras, eu lembro de nós ir da Santa Helena pro Belo Monte assistir o Reisado, e aqui na rua também, assim, as vezes tinha umas casas. Ou mais o Reisado era bom, era muito bonito o Reisado, tinhas os caretas que era quem cantava, tirava lá uns versos, eles faziam em qualquer tempo. Era tudo tipo passos folclóricos, dança folclórica, ai eu sei que era bonito, eu sei a gente ficava assim assistindo, e essas figuras dançado, cantando, era bonito de mais. (SANTOS, 2017).

Na fala de Rosa Isaura Santos, destacamos primeiramente os personagens que faziam parte do Reisado, que são eles: os caretas, a burrinha, a velha do chapéu de fogo, a ema, o lobisomem e o boi. Estas figuras típicas do Reisado realizavam as danças e encenações. Cada uma das personagens recitavam seus versos e executavam suas cantigas.  Os locais onde se realizavam os Reisados eram nas localidades rurais, nas serras.
O Reisado era marcado pela execução de cantigas e recitação de versos. Ao chegarem às residências, o grupo que estava tirando o Reisado, logo se organizava em círculo e começavam cantar e dançar pedindo ao dono da casa para abrir a porta:
Oi de casa e oi de fora
E ô de casa e ô de fora
Menina venha ver quem é
E essa casa é bem feita
Do batente á cumieira (bis)
A porta dura ê, ê.
E que esta porta não quer abrir? (bis)
Bota a chave acenda a luz (bis)
Gostou do reisado? (sim)
Esta casa é bem feita por dentro e por fora não (bis)
Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo para sempre seja louvado.
Minha ama tá boa? Tô. nossa senhora da conceição gostou do reisado? (sim).

Analisando a letra da música acima, podemos concluir que o Reisado não deixa de ser uma manifestação também religiosa. Esse aspecto religioso é notório não apenas pelo período em que é realizado, que vai do natal ao dia de Reis, mas também na frase “Louvado seja nosso senhor Jesus Cristo, para sempre seja louvado”. Esta expressão é usada sempre nas celebrações e missas. Percebemos também aspectos do catolicismo na evocação que se faz a Nossa Senhora da Conceição.
Dada a permissão pelo dono da casa para a entrada dos personagens, começava as danças e apresentações. Após abrirem as portas o boi era apresentado. Ao passo em que os personagens iam se apresentando os caretas executavam os versos e músicas fazendo referência a cada figura. A entrada e apresentação da burrinha eram acompanhadas pela recitação dos versos:
A burrinha que meu ama me deu
Tem um buraquinho no cu,
Foi os ratos que roeu pensando que era beiju.
Tu trabalha minha burra nesta mesma região,
Dá de lá que eu dou de cá para o povo apreciar.
A burrinha da minha ama, como palha de arroz.
Me arrenego desta burra que não pode com nos dois. (bis)

         Analisando os versos acima podemos perceber que embora o Reisado seja uma manifestação fortemente associada à religiosidade, percebemos em seus versos certos aspectos de profanidade, quando se é recitado algumas palavras, podendo ser considerado uma festa “sagrada” e “profana”. 
Em seguida entrava a velha do chapéu de fogo, e posteriormente apresentava-se a ema, cada qual sendo acompanhada pelas suas respectivas músicas:

Velha do chapéu de fogo:
A velha chegou de chapéu de fogo
E ela quer dançar velha de chapéu de fogo
É pra vadiar chapéu de fogo
E ela levanta a saia velha de chapéu de fogo
E ela levanta os braços velha de chapéu de fogo
Penera a velha de chapéu de fogo
Ela é bonita chapéu de fogo
E ela quer se casar chapéu de fogo
E ela não acha com quem velha de chapéu de fogo
Ela vai embora de chapéu de fogo.
                         Ema:
                 E essa ema capa gente, Oh! chente, oh! Chente.
                 E ela capa derrepente, oh! chente, oh! Chente.
                 Ela quer me beliscar thi, thi, thi.
                 E essa ema capa gente, Oh! chente, oh! chente,
                 E ela capa derrepente, oh! chente, oh! Chente
                 Ela quer me beliscar thi, thi, thi.

A última figura a se apresentar era o lobisomem, nossas fontes orais ressaltam que este personagem era bastante divertido, sua interação e “briga” com os outros personagens agradava ao público que assistia. A encenação do lobisomem era acompanhada pela cantiga:
Valei-me nossa senhora, mãe de Deus da Conceição,
Que este bicho lobisomem tem a pintura do cão.
Essa noite a meia noite eu fui tirar caju maduro,
Esse bicho lobisomem tá querendo me pegar no escuro
Ai, ai, ai eu quero me esconder, ai, ai, ai eu quero me esconder.
Que esse bicho lobisomem tá querendo me comer. (3 vezes).

Sendo o Lobisomem a figura que faziam o gosto dos espectadores, conversando com nossas fontes orais, procuramos saber sobre como era o imaginário que a população tinha sobre o Lobisomem, quais as histórias que se contavam a respeito desse ser mitológico.  Nossas fontes afirmam que o Lobisomem era um ser que provocava a imaginação de muitas pessoas, e estava ligado ao folclore local. Nas décadas de 1960 e 1970 contavam-se muitas histórias e lendas de assombrações, uma destas era sobre o Lobisomem. Rosa Isaura Santos (2003), em seu livro, Francisco Santos é assim, destaca que naquela época acreditava-se que as pessoas que vivem juntas por muito tempo sem se casarem, viram “bicho”, um desses era o Lobisomem.
O Reisado era uma manifestação que agradava a população franciscossantense e fazia a alegria de seus espectadores, através das falas e apresentação de seus personagens, estes vestidos a caráter de acordo com aquilo que estavam representando. Nas décadas de 1960 e 1970 era uma manifestação costumeiramente realizada e assistida pela população de Francisco Santos e atualmente é extinta da cultura popular da cidade.

   

4 CONSIDERAÇÕES FINAIS

 A pesquisa que realizamos teve como objetivo analisar a cidade de Francisco Santos e as práticas cotidianas de seu povo a partir das produções literárias e dos relatos dos sujeitos históricos. Ao longo do primeiro capítulo pudemos perceber quão importante é a literatura, e como esta pode ser utilizada como fonte histórica.
No decorrer do primeiro capítulo ficou constatado como a literatura é uma fonte primordial para compreendermos aspectos cotidianos da cidade de Francisco Santos nas décadas de 1960 e 1970. Analisamos aspectos relacionados à religião, ao comércio e a educação. Como era de nosso intuito fazermos uma análise comparativa da cidade a partir da literatura e da memória, assim o fizemos, e pudemos perceber que há várias aproximações da cidade na visão dos literatos e na memória de seus moradores, pois todos os relatos orais eram basicamente um complemento das poesias, cordéis e crônicas que utilizamos nessa pesquisa.
Pudemos constatar que o povo franciscossantense é tido em outras regiões como sendo um bom vendedor, e o fato de sair para outras cidades e regiões para comercialização do alho, e sempre conseguir vender seu produto, fez com que muitas pessoas começassem a usar o termo “espritado” para designar a tenacidade, a persistência e a coragem do povo de Francisco Santos. No título deste trabalho também utilizamos o termo “espritado” para fazermos alusão à multiplicidade de práticas cotidianas e a diversidade de práticas culturais dos habitantes da cidade. O uso do termo teve ainda o objetivo de desconstruir a visão preconceituosa que algumas pessoas têm sobre o mesmo, atribuindo-o como sendo um xingamento.
Essa pesquisa nos possibilitou fazermos um estudo sobre as manifestações culturais na cidade de Francisco Santos. É preciso ressaltar que as produções literárias não oferecem nenhuma página que faça referência à cultura. Porém, como abordamos no segundo capítulo, as práticas e manifestações culturais estão bem presentes nos relatos orais dos sujeitos históricos, percebemos isso ao longo de nossas entrevistas, e decidimos dedicar um capítulo a trabalhar com essas manifestações. Primeiro, para provocar os literatos, no sentido de nunca terem tido o interesse em fazer produções relacionadas à cultura, visto que Francisco Santos nas décadas de 1960 e 1970 contava com manifestações culturais diversas. Segundo, para que pudéssemos deixar registros escritos sobre essas manifestações culturais, para que as futuras gerações possam ter uma visão de como era a cultura do povo de Francisco Santos no passado. E que possam sentir-se instigados a reviverem tais manifestações, tendo em vista que a tradição das manifestações, citadas nesta pesquisa, se perderam ao passar dos tempos.
Dessa forma, ao compararmos Francisco Santos das décadas de 1960 e 1970, com Francisco Santos de hoje, podemos concluir que atualmente é uma cidade sem nenhuma manifestação cultural popular.
Esse estudo acerca das práticas cotidianas e das manifestações culturais populares em Francisco Santos torna-se importante em termos históricos, pois, possibilitará aos habitantes da cidade e a gerações futuras compreenderem aspectos cotidianos da cidade do passado, a partir do diálogo estabelecido entre memória e literatura. Sendo assim, essa pesquisa é de grande relevância, pois ela possibilitará analisar e compreender as aproximações entre a visão dos literatos e a memória de um povo, em relação à cidade de Francisco Santos.



REFERÊNCIAS


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Por Cleovan Sousa, poeta, conselheiro tutelar e ativo participante da vida cultural e religiosa de Francisco Santos.

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