terça-feira, 27 de janeiro de 2015

O diretor sumiu

          Tenho pensado muito sobre a delicadeza e a importância da transparência nos dias de hoje. Temos vivido crises de todos os tipos: crise econômica, política, moral, ética, hídrica, energética e institucional. Todas elas foram gestadas pela ausência de transparência, de confiança e de credibilidade. 
          Se tivesse havido transparência na condução da economia no governo Dilma, dificilmente a presidente teria aprofundado os erros que nos trouxeram a esta situação de descalabro. Não estaríamos agora tendo de viver o aumento desmedido das tarifas, a volta do desemprego, a diminuição de direitos trabalhistas, a inflação, o aumento consecutivo dos juros, a falta de investimentos e o aumento de impostos, fazendo a vaca engasgar de tanto tossir. 
          Assim que a presidenta foi eleita, seu discurso de posse acompanhou o otimismo e reiterou os compromissos da campanha eleitoral: "Nem que a vaca tussa!"
          Havia uma grande expectativa a respeito do perfil da equipe econômica que a presidenta Dilma Rousseff escolheria. Sem nenhuma explicação, nomeia-se um ministro da Fazenda que agradaria ao mercado e à oposição. O simpatizante do PT não entende o porquê. Se tudo ia bem, era necessário alguém para implementar ajustes e medidas tão duras e negadas na campanha? Nenhuma explicação. 
          Imagina-se que a presidenta apoie o ministro da Fazenda e os demais integrantes da equipe econômica. É óbvio que ela sabe o tamanho das maldades que estão sendo implementadas para consertar a situação que, na realidade, não é nada rósea como foi apresentada na eleição. Mas não se tem certeza. Ela logo desautoriza a primeira fala de um membro da equipe. Depois silencia. A situação persiste sem clareza sobre o que pensa a presidenta. 
          Iniciam-se medidas de um processo doloroso de recuperação de um Brasil em crise. Até onde ela se propõe a ir? Até onde vai o apoio à equipe econômica? 
          Para desestabilizar mais um pouco a situação, a Fundação Perseu Abramo, do PT, critica as medidas anunciadas, o partido não apoia as decisões do governo e alguns deputados petistas vociferam contra elas. Parte da oposição, por receio de se identificar com a dureza das medidas, perde o rumo criticando o que antes preconizou. 
          O PT vive situação complexa, pois embarcou no circo de malabarismos econômicos, prometeu, durante a campanha, um futuro sem agruras, omitiu-se na apresentação de um projeto de nação para o país, mas agora está atarantado sob sérias denúncias de corrupção. 
          Nada foi explicado ao povo brasileiro, que já sente e sofre as consequências e acompanha atônito um estado de total ausência de transparência, absoluta incoerência entre a fala e o fazer, o que leva à falta de credibilidade e confiança. 
          É o que o mercado tem vivido e, por isso, não investe. O empresariado percebe a situação e começa a desempregar. O povo, que não é bobo, desconfia e gasta menos para ver se entende para onde vai o Brasil e seu futuro. 
          Acrescentem-se a esse quadro a falta de energia e de água, o trânsito congestionado, os ônibus e metrôs entupidos, as ameaças de desemprego na família, a queda do poder aquisitivo, a violência crescente, o acesso à saúde longe de vista e as obrigações financeiras de começo de ano e o palco está pronto. 
          A peça se desenrola com enredo atrapalhado e incompreensível. O diretor sumiu. 


MARTA SUPLICY é senadora pelo PT-SP. Foi prefeita de São Paulo (2001-2004), ministra do Turismo (2007-2008) e ministra da Cultura (2012-2014).


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quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Colírio

MAYKELINE ROCHA

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domingo, 11 de janeiro de 2015

O DOCE PICOLÉ DE... FÁTIMA


          A PROVA PESSOAL - e inconteste! - da religiosidade dedicada a intermedianeiros vem das minhas mais tenras lembranças, e data do ano de 1953, quando corria em peregrinação a imagem de Nossa Senhora de Fátima, vinda de Portugal para gáudio e glória da grei católica do sofrido Povo Nordestino. A visita da Santa aos Picos dar-se-ia em outubro daquele ano, mas os preparativos do povo para tão raro acontecimento já vinham de longa data. Lembro-me de que, por ocasião das farinhadas em junho, já todo mundo falava da grande festa e cuidava de economizar um dinheirinho para tal fim. Havia passagens, roupas de guarda, calçados para as mulheres e botinas novas para os homens. As despesas seriam enormes...
          Turmas de voluntários tapavam buracos, rebaixavam ladeiras e lombadas e roçavam caminho para tornar trafegável a precária vicinal que ligava Jenipapeiro  à grande Central de piçarra, construída havia alguns anos, rasgando o sertão inculto para ligar Picos a nossa Capital, para um lado, e ao resto do país, para o outro, através de Pernambuco. Para completar a pequena verba que a Prefeitura de Picos mandara, foi preciso arrecadar “esmolas” em pios leilões e doações espontâneas.
          Antecipadas consequências começaram a surgir dessa perspectiva de festa. O papa Pio XII, devoto de Nossa Senhora, já antes incrementara a oração do terço no seio das famílias como forma de combater a incipiente migração de católicos para os cultos protestantes, em pleno florescimento após a Proclamação da República, em 1889, regime que tornou o Brasil, constitucionalmente, um país laico, ou seja, em que se permitia a liberdade de culto. A vinda da imagem da Santa portuguesa ao país serviu de estímulo ao redobrado fervor religioso que se estabeleceu.
          O jenipapeirense não poderia ficar de fora desse engajamento mariano-fanático. Assim, no campo espiritual, maior ênfase foi dada à reza do santo terço, tornando-o bem mais longo em adendas orações e humildes queixas. Sentimento de fervor e piedade era visível em cada rosto. Para nós, meninos, que nada entendíamos, aqueles esticados terços eram verdadeiro suplício. A gente não podia se mexer, se coçar, falar ou bater pestana. A rabiçaca logo vinha, com promessa de alentada coça em caso de recidiva.
          Por outro lado, o comércio floresceu com o inusitado aumento da “troca” [1] de santinhos, terços e rosários, adquiridos no Juazeiro de Padim Ciço e "trocados" a peso de ouro nos dias de feira. Contas brancas e azuis alternando-se na divisão dos mistérios (gozosos, gloriosos, dolorosos etc.), enfeitavam, aos milhares, os pescoços de vetustas senhoras e de frescas senhorinhas, todas possuídas desse fervor ingênuo e carola que as levava a realizar intermináveis sessões de ladainhas e rosários, ora em alevantadas vozes, ora apenas em sussurros dos quais só o leve movimento labial era perceptível. Até veneráveis anciões deram de usar rosário no peito.
          Após esses preliminares, para muitos cheios de dolorosas expectativas, chega, afinal, o grande dia da viagem. De véspera, caminhões e mais caminhões paus-de-arara chegaram ao vilarejo, causando tropelias e espanto, que caminhão era novidade só de poucos conhecida. Acorre-me à lembrança que um desses caminhões - o carro do Expedito, como passou a ser referido – trazia na parte de trás enorme cruzeiro de madeira como símbolo da fé e religiosidade de seu proprietário. Aquilo mais parecia uma estratégia de negócio, vez que foi bastante procurado pelos fiéis para nele embarcarem na santa peregrinação.
            Era muita gente se alvoroçando, arrumando fatiotas no saco de lona e vindo para perto dos caminhões a fim de prevenir lugar e não perder a viagem. Resta referir que no dia anterior já caravanas e mais caravanas haviam partido, a cavalo ou a pé, como meu tio Nanô (Antônio Leôncio), para uma estirada de quase 15 léguas. Eu, então menino de 9 anos, era todo ansiedade. Afinal, pela primeira vez, iria conhecer a grande cidade – os Pico, como se dizia na linguagem cabocla.
          
Da viagem propriamente dita, pouco tenho a relatar, a não ser os percalços naturais, como o enorme calor do forte sol do meio dia, a poeira vermelha da piçarra que logo a todos igualou num único borrão, os catabis que ameaçavam jogar fora da carroceria os bestifica-dos passageiros, além, é claro, da enorme alga-zarra de crianças, jovens, adultos e velhos, todos deixando extravasar sua alegria pelo fato inédito e talvez único de suas vidas: a viagem de caminhão para ver a Santa!
            Das acomodações, nem é bom falar! Numa fazenda situada onde depois funcionou o seminário, então propriedade de Dr. Moura, dezenas de oiticicas, mangueiras e cajueiros serviram ao pernoite dos peregrinos, cujas “tipóias” foram armadas de qualquer maneira. Quem não trouxe rede, estendeu-se no chão, sobre o tapete macio de folhas secas. Afora uma ou outra picada de formiga, a dormida foi tranqüila e calma. Parece que em respeito à Santa, nem cobra deu as caras por ali.
            Correu boato de um fato, pitoresco para alguns e pecaminoso para outros, dando conta de que, altas horas da noite, quando a multidão dormia nessa descuidada promiscuidade, uma senhora, julgando-se "procurada" pelo marido, teria indagado, em voz baixa:
            “ - Antão?
            - Que que é, mulé?
            - Antão, tu tá n´eu?
            - Não, diacho; vá drumi, que hoje num é dia disso, não”.
            Daí a pouco:
            “ - Antão?
            - O que é, mulé?
            - Tu num tá mermo n´eu não, home?
            - Já dixe que não; ora que coisa!
            - "Antão", tão..."
            - "Te aqueta, mulé!"
            Teria o ato libidinoso se consumado? Ninguém sabe. O fato não foi comprovado, embora muito se tenha cogitado da identidade do espertinho que tentou tirar casquinha num sacrílego imbróglio amoroso.
            No dia seguinte teve almoço para todos. O doutor Moura mandara abater um boi para servir àquela gente conterrânea e amiga, talvez o último rasgo de generosidade dos Santos, conforme costume do finado coronel Chico Santo, o “Chico Fartura”, como era conhecido, que durante a vida jamais faltou com rancho e comida para o conterrâneo e parente que lhe batesse à porta.
            Desse memorável evento religioso, conta-nos Renato Duarte (1995), em PICOS - Os Verdes Anos Cinquenta, fato pitoresco, como segue:
No dia 22 de outubro de 1953 Picos vivenciou o maior acontecimento religioso de sua história: a visita da imagem de Nossa Senhora de Fátima, na peregrinação pelo Brasil. Na realidade, aquele foi um acontecimento extraordinário não só por ter reunido a maior quantidade de pessoas já vistas na cidade, como também pela ocorrência de uma inesperada demonstração de misticismo que iria dividir a atenção dos fieis. (...) Ao chegar em frente à igreja, por volta das 17 horas, a imagem foi colocada em um pedestal com pouco mais de dois metros de altura, construído no meio do patamar, e voltada para a multidão que se aglomerava na praça Frei Ibiapina. (...) Durante as celebrações religiosas ao longo do dia, três crianças, com trajes de pastores, postavam-se ajoelhadas diante da imagem, completando a recriação da cena da aparição em Fátima.
          
   A essa altura, não longe dali, acontecia um fenômeno de grande impacto popular e místico, e que sem dúvida contribuiu para empanar o brilho da programação oficial. No momento da chegada da imagem em frente à igreja, na tarde anterior, dezenas de pombos foram soltos, numa simbolização aos apelos da paz feitos por Nossa Senhora, de acordo com os três videntes. Um dos pombos, depois de sobrevoar a multidão, pousou na cabeça de uma camponesa - uma matuta, como se dizia -, ali permanecendo apesar do tumulto que o acontecimento gerou. Grande parte das pessoas que se encontravam no local interpretou o fato como um milagre, e a jovem, que se chamava Maria, passou a dividir com a imagem de Nossa Senhora de Fátima a atenção dos fieis. Em seguida, a jovem foi conduzida em romaria até à casa onde se encontrava hospedada, pertencente ao major Dirceu e localizada no atual nº 101 da rua Padre Cícero Santos. Como o pombo se mantivesse pousado na cabeça da jovem durante o trajeto, aumentou a crença do povo de que se tratava realmente de um milagre, e o pequeno quarto dos fundos da casa onde ela havia sido alojada tornou-se um local de intensa romaria. Apesar dos esforços dos padres em minimizar as conotações místicas do fenômeno, não era pequeno o número de pessoas que acreditavam estar diante de um novo milagre de Nossa Senhora. A romaria à casa do major Dirceu só terminou quando Maria regressou ao seu local de origem. (p. 121/124)

         Menino do interior, matuto, deslumbrado e abestalhado com a "Cidade Grande", estacionado a quase 200 metros do local em que se encontrava a imagem da santa, não tinha como tomar conhecimento desse extraordinário acontecimento em que toda a mística e religiosidade enviesada do povo brasileiro e especialmente do nordestino se revelava de forma inequívoca e espetacular.
            Da festa propriamente dita, pouco posso contar. Só sei que jamais havia visto multidão maior e tão compacta. A procissão, ao anoitecer daquele 23 de outubro de 1953, clareou o céu com suas milhares de velas ardentes. A grande Avenida Getúlio Vargas e adjacências, bem como o grande largo da igreja matriz (ali se realizava a grande feira semanal), ficaram completamente tomados. No grande patamar, erguia-se enorme cruzeiro, fortemente iluminado de alto a baixo. Tudo grande e belo! E majestoso!
            A cerimônia era um-não-acabar-mais de orações e cantos a retumbar na praça. Apesar de irradiados por diversas amplificadoras, colocadas em pontos estratégicos, o som não passava de zum-zum-zum em que não se distinguiam as palavras, mesmo porque a maioria era em latim, como o "Te Deum Laudemur", o "Gloria In Excelsis Deo", o "Magnificat, Magnificat". (Claro que na época eu não sabia latim, como a quase totalidade dos conterrâneos que ali se encontravam. Isso eu só viria a conhecer depois). Apenas aqui e ali entremeavam-se hinos em português, como o "A Nós Descei, Divina Luz". Quando, porém, já quase no final da celebração, o som do conhecidíssimo hino à virgem se fez ouvir, o urro da multidão repercutiu igualmente ao reboar do trovão nos céus:
                        A treze de maio
                        Na cova da Iria
                        No céu aparece
                        A virgem Maria
            Ao que a multidão, piedosa e exultantemente estrondeava:
                        Avé, Avé, Avé Mariá
                        Avé, Avé, Avé Mariá

            Impressionou-me, sobremaneira, o uníssono da multidão ao responder esse refrão ou dizer amém. Começava num murmúrio e ia num crescendo até semelhar-se a um urro medonho e coleante, como a multidão que serpenteava apertada pelo labirinto de becos e ruas de acesso. Apoteose final, a queima de fogos de artifícios com suas baterias e rojões ensurdeceu a praça e fez dispersar o centauro humano numa debandada sem controle, em que se perdiam e se misturavam todos, com mães aflitas procurando filhos, mulheres buscando maridos, véus pegando fogo na chama das velas, chinelos e sapatos ficando, gritaria e atropelo como nunca se vira, num verdadeiro "estouro de boiada" humana.
            Daquele outubro memorável muitas coisas me ficaram indelevelmente gravadas. Andei de carro pela primeira vez; também pela vez primeira conheci uma cidade de verdade: os Pico, com sua casa de andar no alto do morro, aquela mesma que a gente avistava do Viroveu, em manhã clara, do alto do chapadeiro. Bem assim pudera ver e ouvir o ronco das motocicletas voadoras, com seu barulho infernal e ensurdecedor. Disseram que um dos corredores naqueles "besouros" sem asa era Carlos Luz, filho do prefeito Justino Luz. Outrossim, para aquela festa, meu pai comprara um par de sapatos, dos quais perdi um pé no ruge-ruge da retirada. O outro ficou inservível para uso, mas guardado por muito tempo como objeto da inesquecível aventura. E afinal – pela primeira vez – pudera experimentar, ou quase, o "docegelo" de um picolé! Mais de meio século depois,de tão profundamente encravada que ficou em meu subconsciente, essa lembrança ainda me aflora à mente e me faz eriçar os pelos de emoção...
            Meio dia, sol tinindo de quente. Junto aos caminhões enfileirados, o burburinho da volta, a procura das e pelas pessoas para que ninguém perdesse a condução.
Num carrinho móvel, um vendedor apregoa: 
- Picolé, picolé! Geladim, geladim!
Ao meu lado, Chico de Antonino solicita:
- Pai, compra um!
           O pai de Chico compra. Pelas chupadas que o garoto dá na mitigativa guloseima, deduzo que deve ser muito gostosa.
            - Pai – digo, por minha vez – também quero um.
            O pai, meu pai, bate no riscado, caça, procura. Nem um níquel no bolso. Carrancudo, responde para o filho, esperançosamente aflito:
            - Compro isso não; é porcaria.
Inveja, olhar comprido. De que tamanho? Sei lá! Fico apenas espiando, sofrendo. Em dado momento, da boca do outro desprende-se um naco e cai no banco de madeira em que ambos estamos sentados. Não pude evitar, foi instintivo. Pego a pequena porção, que se derrete antes que alcance minha boca. Meus dedos, porém, ficam molhados. Coloco-os na boca...
           Dos olhos de meu pai escorre um filete de lágrima.
           Ai, doce (?) picolé da infância! O picolé de... Fátima.





[1] Referindo-se à aquisição de objetos sagrados e religiosos, não se falava em compra, dizia-se:  “troca”. 


Autoria de João Bosco da Silva. Este texto faz parte do livro ainda inédito: DE PÉ - COXÓ. 
Natural de Francisco Santos, tem dedicado seu tempo a escrever em verso e prosa. Mesmo tendo ficado ausente durante muitos anos, João Bosco conseguiu reacender a chama do amor à sua terra natal e tem contribuído significativamente com a nossa cultura, para tanto tem publicado alguns livros de teor autobiográfico. 
Tem publicados os seguintes livros: Pensão Cacilda; Geralho; Viroveu, um sentimento interior(ano) e outras histórias; Jenipapeiro, a terra dos espritados – Memorial geopolítico; Placebo; Romanceiro dos Versejadores e Repentistas de Jenipapeiro.
Tem outras obras ainda não publicadas: O Sacerdote de Hipócrates, novela premiada em primeiro lugar em concurso literário da FUNDAC, em 2006; O Santo Pároco Entre Aspas, romance; Assim na terra como no sonho, romance; Fazendeiro DiVersos, poesia moderna; Estação do estilo e forma, livro de sonetos.


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