quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014

Ela fala pelo Brasil

                              Editorial de O Estado de S.Paulo

          Até mesmo o lusófono presidente da Comissão Europeia, José Manuel Durão Barroso, deve ter tido sérias dificuldades para entender os dois discursos da presidente Dilma Rousseff proferidos em Bruxelas a propósito da cúpula União Europeia (UE)-Brasil. Não porque contivessem algum pensamento profundo ou recorressem a termos técnicos, mas, sim, porque estavam repletos de frases inacabadas, períodos incompreensíveis e ideias sem sentido.

          Ao falar de improviso para plateias qualificadas, compostas por dirigentes e empresários europeus e brasileiros, Dilma mostrou mais uma vez todo o seu despreparo. Fosse ela uma funcionária de escalão inferior, teria levado um pito de sua chefia por expor o País ao ridículo, mas o estrago seria pequeno; como ela é a presidente, no entanto, o constrangimento é institucional, pois Dilma é a representante de todos os brasileiros - e não apenas daqueles que a bajulam e temem adverti-la sobre sua limitadíssima oratória.

          Logo na abertura do discurso na sede do Conselho da União Europeia, Dilma disse que o Brasil tem interesse na pronta recuperação da economia europeia, "haja vista a diversidade e a densidade dos laços comerciais e de investimentos que existem entre os dois países" - reduzindo a UE à categoria de "país".

          Em seguida, para defender a Zona Franca de Manaus, contestada pela UE, Dilma caprichou: "A Zona Franca de Manaus, ela está numa região, ela é o centro dela (da Floresta Amazônica) porque é a capital da Amazônia (...). Portanto, ela tem um objetivo, ela evita o desmatamento, que é altamente lucrativo - derrubar árvores plantadas pela natureza é altamente lucrativo (...)". Assim, graças a Dilma, os europeus ficaram sabendo que Manaus é a capital da Amazônia, que a Zona Franca está lá para impedir o desmatamento e que as árvores são "plantadas pela natureza".

          Dilma continuou a falar da Amazônia e a cometer desatinos gramaticais e atentados à lógica. "Eu quero destacar que, além de ser a maior floresta tropical do mundo, a Floresta Amazônica, mas, além disso, ali tem o maior volume de água doce do planeta, e também é uma região extremamente atrativa do ponto de vista mineral. Por isso, preservá-la implica, necessariamente, isso que o governo brasileiro gasta ali. O governo brasileiro gasta um recurso bastante significativo ali, seja porque olhamos a importância do que tiramos na Rio+20 de que era possível crescer, incluir, conservar e proteger." É possível imaginar, diante de tal amontoado de palavras desconexas, a aflição dos profissionais responsáveis pela tradução simultânea.

          Ao falar da importância da relação do Brasil com a UE, Dilma disse que "nós vemos como estratégica essa relação, até por isso fizemos a parceria estratégica". Em entrevista coletiva no mesmo evento, a presidente declarou que queria abordar os impasses para um acordo do Mercosul com a UE "de uma forma mais filosófica" - e, numa frase que faria Kant chorar, disse: "Eu tenho certeza que nós começamos desde 2000 a buscar essa possibilidade de apresentarmos as propostas e fazermos um acordo comercial".

          Depois, em discurso a empresários, Dilma divagou, como se grande pensadora fosse, misturando Monet e Montesquieu - isto é, alhos e bugalhos. "Os homens não são virtuosos, ou seja, nós não podemos exigir da humanidade a virtude, porque ela não é virtuosa, mas alguns homens e algumas mulheres são, e por isso que as instituições têm que ser virtuosas. Se os homens e as mulheres são falhos, as instituições, nós temos que construí-las da melhor maneira possível, transformando... aliás isso é de um outro europeu, Montesquieu. É de um outro europeu muito importante, junto com Monet."

          Há muito mais - tanto, que este espaço não comporta. Movida pela arrogância dos que acreditam ter mais a ensinar do que a aprender, Dilma foi a Bruxelas disposta a dar as lições de moral típicas de seu padrinho, o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Acreditando ser uma estadista congênita, a presidente julgou desnecessário preparar-se melhor para representar de fato os interesses do Brasil e falou como se estivesse diante de estudantes primários - um vexame para o País.

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segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014

Tolerância zero

                    DORA KRAMER - O Estado de S.Paulo

          A intolerância está em toda parte. Na internet chegou a níveis insuportáveis. Nas ruas manifestações abrigam pistoleiros de aluguel. A presidente da República reage a críticas com termos de vulgaridade incompatível com o cargo, desatenta ao fato de que reeleição rima com reputação.

          Na Praça dos Três Poderes os sem-terra tentam invadir o Supremo Tribunal Federal em conflito cujo saldo foi de 30 feridos, oito deles em estado grave. A oposição acorda da letargia e vai ao ataque, enquanto na base governista a revolta se avoluma e no tradicionalmente submisso setor empresarial a grita é diária e cada vez mais contundente.

          À atmosfera ruim acrescenta-se o imprevisível: o rumo da economia, o risco de a Copa do Mundo se transformar num presente de grego e uma campanha eleitoral que será tão mais acirrada e conturbada quanto maior for a redução do favoritismo da presidente Dilma Rousseff. Com isso, o aumento da probabilidade de o PT se ver em via de voltar à planície.

          A tensão aproxima-se do clímax, mas não surgiu de repente nem nasceu por geração espontânea. É filha legítima da dinâmica beligerante que o PT imprimiu ao seu modo de governar, tendo Luiz Inácio da Silva como o comandante em chefe.

          O ato de confraternização em que Lula vestiu o boné do MST logo no início de seu primeiro governo soou como um aval do então presidente às ações do movimento. Raras as que não tinham caráter violento. Quando não de agressão física, de ofensa ao direito de propriedade consagrado pela Constituição.

          A sucessora agora repete o ato de fiança aos renitentes infratores da lei quando os recebe em Palácio no dia seguinte à promoção de um conflito ali mesmo às portas do Planalto. A motivação? Reatar o diálogo com o MST, como se fosse conversa o objetivo de quem invade, depreda e destrói laboratórios de pesquisa.

          Dilma retoma, assim, a mecânica conflituosa que Lula resumiu na expressão "nós contra eles" ao dividir o País entre apoiadores patriotas e críticos conspiradores.

          Não há, pela lógica do governo, opositores. Há inimigos a serem dizimados. O exemplo "de cima" espalhou-se pirâmide social abaixo, contaminou os oposicionistas igualmente enraivecidos e fez da tolerância artigo em extinção.

          A ausência de civilidade se generalizou. Não se trocam ideias, altercam-se insultos.

          Sabem o senhor e a senhora do que anda precisando nosso País? Uma mudança de hábitos. Por exemplo, competência e honestidade são valores a serem bem pesados e medidos na hora da escolha de governantes.

          Mas se a esses atributos acrescentarmos a familiaridade com bons modos e respeito ao melhor da língua portuguesa, podemos contar com a expectativa do retorno a um País senão ilusoriamente cordial, ao menos minimamente civilizado.

          Meia-trava. O voto aberto para cassações de mandatos de parlamentares é providência merecedora de todas as homenagens recebidas. Convém, contudo, confiar desconfiando.

          Levar em conta o outro lado da moeda e aguardar para conferir se não vai diminuir consideravelmente o número de casos de pedidos de punição por quebra de decoro parlamentar levados ao Conselho de Ética, que chegarão ao plenário.

          Ou, por outra: como o voto no conselho também é aberto, o travamento pode se dar nas Mesas Diretoras da Câmara ou do Senado.

          As bancadas dos partidos também se esforçarão para impedir que seus deputados e senadores sejam alvos de processos de cassação. É uma forma de o Congresso se proteger sem abrir mão do corporativismo.

          Militância. A se aceitar a versão do governo de que os críticos à condução do País se dividem entre pessimistas e oposicionistas, fica a dúvida sobre a posição do banco central americano.

          Se enquadrado na categoria dos pessimistas, não fica claro qual o interesse do negativismo. Classificados no grupo dos eleitoralmente engajados, ficam abertas as apostas sobre o número de eleitores dispostos a votar sob orientação de Mrs. Janet Yellen, presidente do Federal Reserve.


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quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

Apertem os cintos, o governo sumiu!

          Governos existem para controlar as circunstâncias, não para ser controlados por elas; governos existem para irem adiante, e não atrás dos acontecimentos; governos existem para cercar as margens de erro, antecipando-se aos problemas, não para elaborar desculpas implausíveis; governos existem para informar-se sobre o futuro e as consequências dos seus atos - não com bola de cristal, mas com os dados objetivos fornecidos pela realidade -, não para confundir a embromação com o otimismo.

          Isso tudo é querer demais? Pode ser. Mas, digamos, nosso problema principal não é o tamanho do superávit primário, a seca que vai subtrair água e energia, o tapering do Banco Central dos EUA ou as matérias de duvidosa qualidade da The Economist e do Financial Times, mais alarmistas que o devido. A questão essencial no Brasil de hoje é outra: a excessiva distância entre o que o governo deveria ser e o que é. Essa distância, que não para de se ampliar, é o nosso problema número um.

          Estamos colhendo, literalmente, o que temos plantado. Quando plantamos direito - caso do agronegócio, que tem livrado o Brasil de um vexame na balança comercial dos últimos anos -, colhemos bons frutos. Quando plantamos o erro, o que se colhe é... uma safra de erros.

          O déficit em conta corrente do balanço de pagamentos, problema n.º 1 da economia brasileira, que a torna tão vulnerável às apostas do mercado financeiro internacional, tem como causa principal o déficit comercial do setor industrial, que no ano passado foi de espantosos US$ 105 bilhões. Essa situação resultou de uma escolha da política econômica lulista, muito especialmente a partir da crise internacional de 2008/2009.

          Aqui e ali, multiplicam-se as críticas sobre a perversidade do farto financiamento do BNDES a alguns setores da indústria, algumas fundadas, outras nem tanto - e não vou entrar no mérito neste texto, a merecer outro artigo. Ou, ainda, há quem atribua isso ao "fechamento da economia", embora ela não pare de se abrir. A questão essencial, porém, é outra. O governo brasileiro assiste inerme a um processo de desindustrialização - a grande marca do governo Lula - que cobra um preço social altíssimo no médio e no longo prazos, já que é o setor que paga os melhores salários e que força com mais velocidade a especialização da mão de obra.

          A escolha dos governos do PT foi torrar o dinheiro proveniente tanto dos altos preços das nossas exportações de produtos agrominerais como da abundância de capital externo barato. Como mencionou o professor Edmar Bacha, entre 2004 e 2011, tivemos uma farra econômica no Brasil: nada mais nada menos do que 25% do aumento do gasto doméstico foi financiado por esses dólares. Tudo para consumir e substituir produção doméstica. Pouco ou nada para fortalecer a competitividade da economia, elevando os investimentos públicos e privados e a oferta de bons empregos. Tudo para elevar a carga tributária que sufoca a produção e castiga proporcionalmente mais os setores sociais de menores rendas, via tributação indireta. Pouco ou nada para dar sustentação permanente à elevação do padrão de vida.

          Pior ainda. O governo fez o possível para atrapalhar a Petrobrás, atrasar os investimentos em novos campos, travar as concessões de estradas, dentro de sua ideologia mais profunda: transformar facilidades em dificuldades. Isso nos privou de um precioso vetor de crescimento da economia, pelo lado da demanda e da produtividade.

          A despeito das fanfarronices sobre a suposta agilidade do Brasil nos negócios externos, a verdade é que, das grandes economias, o Brasil é o único que não celebrou pactos comerciais bilaterais. Foram centenas no mundo nos últimos dez anos. O Brasil firmou só três: com Israel, Palestina e Egito... Ao contrário: continua amarrado ao Mercosul - o maior erro cometido pelo Itamaraty na sua história moderna, reiterado por cinco governos diferentes. E vejam bem: o estorvo essencial do Mercosul não vem dos Kirchners. É fruto da estultice da ideia de fazer dele uma união alfandegária, que suprimiu a soberania comercial no Brasil. Se, por exemplo, fizéssemos um acordo comercial com a Índia, seria preciso que todos os outros parceiros fizessem parte também... O País não se pode dar o luxo de acumular sucessivos, crescentes e escandalosos déficits na indústria sem considerar que está, obviamente, com problema.

          Nada é tão deletério para nós, no que concerne ao futuro, como os erros de análise de perspectiva do governo brasileiro no que diz respeito ao cenário internacional. Tome-se o caso do atual estresse envolvendo a fuga de investidores - os de curto prazo - para EUA e Europa em razão da retomada do crescimento dessas economias: mais forte a americana; ainda modesta, na média, na zona do euro. Chega a parecer piada, mas é verdade: não faz tempo se falava por aqui numa verdadeira "guerra cambial" em razão da enxurrada de dólares que os EUA injetaram na sua economia. Foi uma gritaria danada. Agora que começa o movimento contrário e os dólares estão vindo menos, em vez de chegarem mais, ouve-se o mesmo alarido. Nos dois casos, há uma tendência de culpar os países ricos, mas a fragilização da nossa economia, tornando-a mais suscetível aos ataques especulativos no âmbito do sistema financeiro internacional, foi precisamente obra do governo Lula-Dilma.

          Poderíamos ter-nos protegido dessa volatilidade? Se o ambiente fosse, por exemplo, mais favorável aos investimentos, em vez de o Brasil estar agora lamentando a retomada da economia americana e a melhora na zona do euro, estaria comemorando. E por dois motivos: porque investimentos realmente produtivos não fogem do País da noite para o dia e porque, tivesse uma indústria mais competitiva, estaria se preparando para disputar mercado. Ocorre que essas coisas não se fazem assim, no improviso, da noite para o dia. No fim das contas, é a incapacidade de planejar, ditada por uma leitura capenga do que vai pelo mundo, que nos leva a esse modelo que vai da mão para a boca.

          Apertem os cintos. O governo sumiu!

José Serra é ex-governador e ex-prefeito de São Paulo.

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quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014

GRÉCIA

                                         Ensaio: João Bosco da Silva

            A GRÉCIA ERA (e continua sendo) um país montanhoso, retalhado e pobre, banhado pelo mar ensolarado. Os helenos, depois denominados gregos, instalaram-se no país em face da invasão dos acaicos (± 1.200 aec) [1] e, em seguida, pelos dórios depois de 1.200. Por volta de 800, surgem dois grandes poemas de Homero – a Ilíada e a Odisseia – que narram a guerra dos acaicos, seu poderio e suas migrações, ocorridas cerca de 300 anos antes. A Grécia do VIII século aec é um país dividido em pequenos reinos, com uma nobreza de costumes simples, um povo de cultivadores e artesãos.
         Diante da escassez de solo bom para desenvolver uma agricultura mais rica e diversificada, a oliveira era quase que a única fonte de renda dessa gente campesina. Registra Alan Lloyd (2004):
Separados pelo relevo e pelo mar, os habitantes mais engenhosos começaram a se consolidar em pequenos grupos, cada um dos quais lutando por sua faixa de terra produtiva, sob um chefe guerreiro local. Dessa luta intérmina, foi surgindo, ao longo de séculos, comunidades isoladas e autônomas, cada uma com o seu chefe guerreiro, surgido da necessidade permanente da defesa do território conquistado.

         Por outro lado, aqueles que se estabeleceram nas pequenas praias e enseadas, tiveram, por força da necessidade, de se lançarem ao mar, tirando daí o seu sustento. Mas esses gregos não se confinaram em sua pequena península; ainda no começo de sua história até o século VI aec, eles fundaram numerosas colônias em todo o contorno do Mediterrâneo, da costa da Ásia Menor até Marselha, em vista do que se tornaram hábeis comerciantes e exímios nas artes da navegação.        
Em razão dessa expansão, não se deve confundir a Grécia com o mundo grego, o qual ocupa espaço geográfico bem mais extenso. Mesmo assim dispersos, não perderam sua identidade nem suas raízes, pois tinham na religião e na língua dois traços unificadores que os ajudavam a cimentar e conservar intactas suas características raciais, [2] tendo como pontos de encontro os oráculos e os jogos anuais em que se confraternizavam.
         Quanto ao aspecto religioso, os gregos imaginavam seus deuses como homens, porém mais poderosos e imortais; eles elegeram Zeus como o rei dos deuses. Mas há deuses do céu, como Apolo; do mar, como Poseidon; da terra, dos infernos etc. Até parece que havia um deus para cada uma das atividades humanas. Só no Olimpo, uma espécie de morada dos deuses, havia doze deles, dentre outros: Zeus, Hera, Atena, Afrodite, Apolo etc. Esses deuses tinham, todos, as virtudes e defeitos dos humanos: cobiça, inveja, ódio, amor, paixão etc. - exibindo como diferença apenas um poder bem maior que o do homem: a imortalidade.
Como intermediários entre os deuses e os homens, encontram-se os semideuses ou heróis, autores de façanhas fabulosas, sendo Hércules o mais famoso de todos. O herói grego, também como seus deuses, não era de melhor caráter, portanto capaz de gestos altruísticos e de baixarias as mais terríveis. Os gregos desse período arcaico não tinham sacerdotes, chefes religiosos, hierarquia. Por isso, quando eles não tinham respostas para suas dúvidas, angústias, dilemas e problemas, apelavam para os seus deuses e heróis, cujas soluções, em geral, se davam quase que totalmente em nível antropomórfico.
         Essa é a fase inicial mítica. Hesíodo, em sua Teogonia, explica o nascimento de todos esses deuses, muitos dos quais são, ou contém, partes do universo, de onde surgiu a explicação mítico-poética da gênese do universo e dos fenômenos cósmicos. Do caos original muitos se teriam gerado, o que levaria, séculos mais tarde (± por volta do séc. VI a.C), às primeiras ideias filosóficas que buscaram uma explicação naturalista do mundo e de seus fenômenos a partir de causas físicas. E foi a partir daí, isto é, da busca da causa ou causas primeiras da constituição física do mundo (e dentro deste mundo, o homem), que a filosofia ensaiou os seus primeiros passos, com aqueles que se convencionou chamar naturalistas ou pré-socráticos. Eles são muitos, dentre os quais podemos destacar: Tales de Mileto, Heráclito de Êfeso, Pitágoras (o filósofo dos números), Parmênides, Demócrito, Empédocles e tantos outros. E sucedendo a esses, a tríade cuja fama atravessou os séculos para chegar até nós: Sócrates, Platão e Aristóteles.  
         Na Grécia, duas cidades elevaram-se ao primeiro plano: Esparta e Atenas. Enquanto esta era a cidade dos negociantes, industriais e artistas, aquela era a cidade dos soldados. Assim, politicamente, ambas se diferenciavam: enquanto os espartanos tinham um governo aristocrático e uma organização toda militar, Atenas fora-se tornando democrática, com o povo assumindo, sob Sólon, o governo da cidade. Assim também se constituía o regime político das demais cidades gregas: democracia ou aristocracia.
         Após a última invasão dos dórios, houve um relativo período de paz, que veio a ser quebrado por volta do V século aec, quando os persas, já senhores da Grécia asiática, resolveram atacar a Grécia européia. Nessa guerra, apesar da supremacia persa em termos de exércitos, os gregos saíram vencedores em terra e depois no mar, tendo como conseqüência a libertação total de todo o mundo grego. O principal mérito dessas vitórias coube aos atenienses, não obstante serem os espartanos uma sociedade de guerreiros.
         Após essa vitória dos gregos sobre os bárbaros (era considerado bárbaro todo aquele que não fosse grego), houve um surto de desenvolvimento artístico extraordinário, sobretudo em Atenas, então sob a administração de Péricles. Foi a época em que se construíram os grandes e belíssimos templos, a escultura adquiriu enorme significação, a literatura explodiu em todos os gêneros: o drama, a tragédia, a oratória, a história... Isso sem falar na filosofia, que desde o VII século já vinha revolucionando o pensamento grego com respeito às indagações da origem das coisas, do ser e de suas qualidades.
         Esse destaque fez com que Atenas se tornasse uma espécie de império em torno do qual se agruparam muitas cidades gregas da Ásia e do Arquipélago, fato que terminou gerando revoltas e invejas, notadamente de Esparta, o que culminou por levá-las a guerrearem entre si. Assim, de 431 a 362 aec, a Grécia é despedaçada por lutas intestinas entre as cidades. A guerra do Peloponeso, em que se empenharam Esparta e Atenas, culminou com a queda desta última em 404. Mas a supremacia de Esparta não vai muito longe, pois termina vencida por Tebas. Também nesse interregno, as demais cidades gregas se enfraqueceram pela discórdia entre ricos e pobres. Sobre este aspecto, vejamos a tese levantada por Alan Lloyd:

Por uma estranha lei da vida, apoiada pela História, os empobrecidos e os afluentes são igualmente conservadores. Os abastados não veem necessidade de mudança; os pobres também a temem, pois em sua existência a fome é a única alternativa em sua vida frugal. O radicalismo, o desejo de mudança para melhor, surge daqueles que estão em transição, os que se elevaram acima da paralisia da pobreza, sem terem ainda, contudo, adquirido a indiferença da prosperidade. Eles não estão cegos nem à injustiça nem ao potencial, e desejam alterar as coisas. Eis aí porque, por mais paradoxal que pareça, os oprimidos não costumam se revoltar durante as fases de mais desesperada privação, e sim nos estágios incipientes das reformas, justamente quando começa a haver mudança para melhor.
Assim, o povo da Grécia, tendo tolerado por gerações o domínio dos aristocratas, tornou-se irrequieto quando lhe foi oferecido o vislumbre de uma vida diferente, pelo surgimento de uma classe média. [3]

         Um pouco diferente, porque tem em vista mais o materialismo histórico, que tem em Marx, Engels e Hegel os expoentes máximos, é o ponto de vista esposado por Kautsky sobre a decadência da soberania do estado grego:

A história da Grécia é a de uma guerra eterna entre as várias cidades e as cidades-estados, raramente interrompida para a defesa comum contra um inimigo único. Essas guerras aceleraram enormemente a decadência grega, assim que se fizeram sentir as consequências da economia escravista. 

         Esse mesmo ponto de vista ele expressa com relação a Roma, a cujo enfraquecimento político precede o fracasso da economia, antes baseada na mão de obra escrava, ao afirmar que: Esse (mesmo) destino estava reservado a uma cidade italiana, Roma, que submeteu a seu domínio toda a civilização mediterrânea.
O fato histórico preponderante é que a Grécia, em face de suas querelas internas, que trouxeram consequências desastrosas para sua economia, terminou por cair sob a tutela dos macedônios, no ano de 338 aec, não obstante seu desaparecimento total como Estado politicamente independente só vir a acontecer no ano 30 antes de Cristo.

 
BIBLIOGRAFIA
KAUTSKY, Karl. A ORIGEM DO CRISTIANISMO. Rio de Janeiro-RJ: Civilização Brasileira, 2010.

LLOYD, Alan. MARATONA. Rio de Janeiro-RJ: Ediouro, 2004.

[1] Utilizaremos ora aec: antes da era com; e dec: depois da era comum, ora a.C e d.C: antes e depois de Cristo. (N. do A)
[2] O termo “raça” está empregado, aqui, no sentido de etnia, desvestido de qualquer conotação racista, conforme se pretendeu atribuir em passado recente: raça ariana, raça superior etc. Embora, não há negar, os gregos ou helenos daqueles tempos, bem como os romanos, classificassem como  “Bárbaros”, todos os povos de seu entorno que não tivessem origem helênica ou romana. Isso, de certa forma, se configurava racismo. (N. do A.)
[3] Não nos cabe, neste curto ensaio, concordar com a tese acima citada. Quem sabe, na Grécia de então, a situação se tenha mostrado propícia a uma sublevação. Ultimamente, entretanto, o que se tem visto não é um levante da classe média, pelo menos nos países do mundo árabe. Vejam-se os casos da Tunísia, do Egito, da Líbia e, um pouco antes, da própria Grécia. O que os jornais televisivos apregoam é que tais movimentos têm origem nas populações mais pobres e espezinhadas por eternizados reis e ditadores. (N. do A.)


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Além dos limites

          O que se pode esperar de um partido político cujas principais lideranças e, em consequência, sua militância são incapazes de distinguir o público do privado? Os petistas têm extrapolado todos os limites do comportamento democrático e republicano nas manifestações de repúdio à condenação dos mensaleiros pelo Supremo Tribunal Federal (STF). O desacato ostensivamente praticado pelo petista André Vargas, vice-presidente da Câmara dos Deputados, ao presidente da Suprema Corte, Joaquim Barbosa, sentado a seu lado durante a solenidade de abertura do ano legislativo, mostra mais uma vez que o lulopetismo se considera acima das instituições da República: Joaquim Barbosa representava naquele ato o Poder Judiciário. Não podia ser tratado como um "inimigo" do PT e provocado pelo parlamentar paranaense com a reiterada exibição de um gesto, o punho cerrado, que se tornou o debochado símbolo de protesto dos mensaleiros encarcerados. Não bastasse isso, Vargas, em mensagens pelo celular, escreveu que gostaria de dar "uma cotovelada" em Barbosa. Ontem, desdisse o que havia escrito.


          A companheirada se considera detentora do monopólio da virtude e, nessa condição, autorizada a lançar mão de qualquer meio para cumprir sua missão redentora. Mas, no mundo real, os militantes partidários, mesmo quando investidos de mandato popular ou de autoridade delegada, estão, como toda a cidadania, obrigados a respeitar a lei, as instituições, os procedimentos da convivência democrática. E certamente a desrespeitosa atitude de André Vargas no plenário do Congresso Nacional não foi um bom exemplo, exceto para os correligionários habituados a se comportarem como torcedores de futebol organizados em gangues.

          O episódio do mensalão tem oferecido ao lulopetismo todas as oportunidades de demonstrar que o partido, que há quase 35 anos se colocou na cena política com o propósito radical de lutar contra "tudo isso que está aí", acabou se transformando, depois de chegar ao poder, numa legenda igual ou pior do que todas aquelas que sempre combateu com violência e rancor.

          De início, quando denunciado pelo cúmplice deputado Roberto Jefferson, o PT negou a existência de um esquema de compra de apoio parlamentar mediante o pagamento mensal de propina. No auge da repercussão negativa do episódio, Lula declarou que o PT deveria pedir desculpas à Nação. Já no exercício do segundo mandato, passou a se referir ao episódio como uma "farsa" que se dedicaria a desmontar tão logo deixasse o governo. Quando percebeu que o julgamento pelo STF era inevitável tentou, nem sempre com a conveniente discrição, influenciar os ministros. Anunciada a condenação dos criminosos, fingiu-se de morto. Mas desde então trabalha intensamente nos bastidores para criar junto à militância petista uma reação emocional ao julgamento "autoritário e injusto", para minimizar os efeitos politicamente negativos da prisão da elite petista. E esse trabalho inclui a tentativa de manter mobilizada uma militância frequentemente mal informada e ingênua, fazendo-a crer que é possível a anulação do julgamento.

          A estratégia traçada pelo lulopetismo prioriza a "fulanização" da decisão do STF. Não é o colégio de 11 ministros, 8 deles nomeados pelos governos petistas, o responsável pela condenação dos heroicos ex-dirigentes do partido. O culpado é Joaquim Barbosa, o implacável ministro-relator da Ação Penal 470. E para regozijo dos petistas o próprio Barbosa facilita as coisas com reiteradas atitudes impulsivas e inexplicáveis, como a de ter entrado em férias sem assinar a ordem de prisão de João Paulo Cunha.

          Foi a deixa para que o deputado dirigisse uma carta aberta ao presidente do STF vazada no caradurismo com que os petistas costumam subverter as evidências em benefício próprio. Cunha refere-se o tempo todo a Joaquim Barbosa como se ele fosse o único responsável por sua condenação. E insiste na falácia de que foi condenado "sem provas", aleivosia que respinga na ampla maioria de ministros que o penalizou pelos crimes de corrupção passiva, peculato e lavagem de dinheiro. Tudo era o que se podia esperar de pessoas que não têm noção de limites.


Editorial de O Estadão, 05/02/2014

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