segunda-feira, 14 de julho de 2014

O Mamão

                    MARIANO, nosso seminarista - Honra e Glória - e Orgulho! - da família Loura chegaria em breve, feito padre. Meu pai, dias antes, reunira o filhos e lhes passara as recomendações:

            - Mariano vai chegar já feito padre. Será um ministro da Igreja; por isso vocês têm de passar a tratá-lo com respeito. Nada mais de 'Rano pra cá, 'Rano pra lá, como se ele ainda fosse da iguala de vocês.

            Sança, por ser a mais "despachada" da família, ensaiou protestar, dizendo que ele sempre fora chamado de 'Rano, sendo imediatamente silenciada.

            Era ela a irmã do "paparotes" do seminarista. Em suas férias, ficavam feito unha e carne. Sança lhe fazia todas as vontades: aparava-lhe as unhas com a velha tesoura da marca mundial; banhava-lhe os pés quando ele chegava cansado das viagens de recolhimento das pias esmolas da comunidade; calçava-lhe os chinelos; preparava-lhe água para o banho todos os dias. Quando o velho não trazia água nas ancoretas, ela, rodilha na cabeça, ia buscá-la no Toco, no Brejinho e até no Cercado Velho para que seu querido irmãozinho não ficasse sem o asseio corporal diário, coisa a que nós outros só fazíamos jus uma vez por semana.

            - Ele é granfino, tem jeito de praceante; por isso tem de andar cheiroso - justificava-se quando algum dos irmãos falava de seu puxa-saquismo.

            À resposta do velho de que até Sança teria de se submeter às novas regras, Mané Loura, já casado, pai de filhos, no seu jeito tímido, ousou indagar:

            - Até eu, o irmão mais velho, tenho de seguir também essas ordens?

            - Até eu - retorquiu o velho - até eu, que sou o pai.

            Bió, também casado, mas sempre rebelde, ensaiou uma contraofensiva, quedando-se calado diante de um simples olhar do orgulhoso pai, que perorou:

            - Vocês não podem imaginar o orgulho que estou sentido; imaginem a alegria da mãe de vocês, se estivesse viva!

            Assunto encerrado. Todos os irmãos e demais parentes passariam a chamá-lo: Padre Mariano! Seu Loura, porém, criou dois títulos para o novel ministro de Deus: "mestre" e "coronel", passando a usá-los de acordo com a ocasião. Assim, o seminarista 'Rano passava a ser Padre Mariano, com todo respeito!

            Pois é, o seminarista 'Rano estava chegando! Ordenado padre, agora teria tratamento especial. Lá em casa, desde muitos anos, tudo de bom era pra ele. Meu pai, sempre que se aproximavam suas férias, cuidava de economizar algum dinheiro para melhorar a misérrima despensa de casa, suprindo-a de um-tudo. Potes de doce de ovos, compotas de doce de leite, latas de doce de bananada e goiabada, galinhas engordando no chiqueiro, queijo, mel de abelha guardado do tempo do inverno, e até boas carnes de gado... de primeira! Para a família, era apenas um quilinho por semana, e sempre de segunda.

            O almoço do seminarista era verdadeiro regabofe. Tudo do bom e do melhor. Pra ele, refeições em separado, temperadas com manteiga da terra e até condimentos especiais: cominho, pimenta do reino etc. Pra nós outros, o feijão com arroz... escoteiro. Ou seja: de água no sal e meia colher de azeite de coco ou, se ainda houvesse toucinho, um naco dessa gordura animal, sobra da matança anual do porco ensebado de gordo, ali pelo mês de outubro. Nessa ocasião, a gente se fartava de carne suína. Pois carne de gado a gente só comia uma vez por semana, pra ser feliz.

            Final de novembro de 1951. Ordenação acontecendo no Recife e o novo levita do senhor chegando a dois de dezembro. Nessa oportunidade, o velho caprichara nos suprimentos alimentícios. Numa terra de poucas - ou nenhumas - frutas, não é que ele as conseguira? Não posso atinar onde e com quem ele arranjara bananas, laranjas, cajus, tangerinas, mangas, mamões para encher a fruteira... aliás, dois alguidares, que lá em casa não havia fruteira.

            Ah, mamão!

            Por causa de um mamão, devo ao Padre Mariano (ou não será ele que deve a mim?) uma das maiores sovas que já levei. Eu mal havia completado sete anos; posso antes ter levado outras, mas essa é a primeira de que tenho lembrança. Terrível lembrança, aliás.

            Belo mamão! Fora presente de dona Fina, mulher de Pedim, casal residente nos Cocos. Eu estava junto quando meu pai foi pagar a fruta de extraordinária aparência: grande, amarela, riscos de faca ao comprido, à feição de meridianos, para que o leite pudesse sair, fundilho e encimo bem aparados...

            - Que é isto, seu Loura! Acha que vou cobrar por um mamão pra regalo de nosso padre Mariano?

            - Assim a dona me deixa sem jeito.

            - Que nada! Será sempre um prazer.

            - É que não é só esta vez; vou precisar de outras, já que ele vai passar dois meses lá em casa, de férias - informou o velho, o orgulho alisando os beiços.

            - Já disse: para o Padre...

            E o velho trouxe o belo mamão como se fora uma jóia rara. Para que os ratos não lhe dessem conta, ele o enterrou fundo na farinha, então guardada em um grande caixão, no quarto velho. Também ali eram guardadas - e bem enterradas - as rapaduras com vista a escaparem dos afiados dentes das ratazanas. Alguém há de contrapor que é muito fácil a um rato cavoucar a farinha e encontrar o repasto. Acontece que em sua procura ele não usa apenas as patinhas, mas também o focinho. E nessa demanda poderá engolir, mesmo que acidentalmente, alimento não deglutível. No caso, farinha. Rato é bicho tinhoso, sabe que se engolir farinha seca morrerá engasgado.

            Família pobre, em nossa casa não tinha essa de merenda, não. Eram somente as três refeições - limpas e secas: café, almoço e janta. Não obstante possuirmos goma de safra, só ocasionalmente o velho consentia que se fizessem um ou dois beijus para degustação na hora do cafezinho das três da tarde; este, sim: tradicional. A janta era coalhada - invariavelmente. Vale lembrar, porém, que rapadura era praticamente a única merenda de que dispúnhamos à vontade. Neste caso, seu Loura abria as burras: comprava três ou quatro a cada feira.

            Fato é que na manhã do dia 30 de novembro, antevéspera da chegada do Padre, bateu-me uma vontade danada de matar a fome com um pedaço de rapadura. Ao caquear na farinha, o que os meus dedos ávidos encontram? O mamão!

            E que mamão!

            Rápido, corro à cozinha, tomo de uma colher daquelas de "flande" amarelo, furo-lhe o fundo com muito jeito. E o vou comendo, saboreando em verdadeiro gozo gastronômico, enquanto vou cuspindo os caroços, sempre amargos. Quando acabei de raspá-lo, o "bicho" mocou, murchou: fuuuuuu! Só então me dei conta de que aquela "preciosidade" era pra 'Rano, aliás, para o Padre Mariano, que chegaria no dia seguinte.

            Pois não é que devorara o mamão todinho?! Bem sabia que era pra ele, posto que vira João Mariano recebê-lo das mãos dadivosas de dona Fina, como presente. A sova seria inevitável. E pensei: o que tá feito, tá feito; seja o que Deus quiser.

            Soprei-lhe no buraco que eu mesmo havia feito no fundo e o "bicho" encheu feito bexiga de porco quando a gente sopra para fazer bola. Ao tentar enterrá-lo, esvaziou-se: fuuuuuu, de novo. Ainda estava na luta de tentar enterrá-lo, mas, então, escutei a fala de seu Loura chegando do Viroveu. Não contei conversa. Saí porta a fora e busquei subir no trapiá de Manoel de Domingas, 100m adiante, na descida da porteira do curral.

            Seu Loura era macaco velho. Ao me ver em desabalada carreira, pensou: "Aí tem coisa!" Foi direto ao caixão de farinha. Do belo mamão só havia o fole murcho da casca. Sem contar conversa, correu atrás do faltoso. Agarrou-me pela perna, quando eu já ganhava um dos muitos galhos do frondoso trapiá.
            Nem cocorote, nem palmada, nem palmatória, nem cinturão... Talvez só taca de tanger gado doeria mais que cipó de bananinha descascado. Foram apenas cinco "lamboradas"; sem conversa. O mijo me desceu na perna. E olha que eu era o caçula e mimado, que ia estudar pra ser doutor...

OBS: 'Rano é, corruptela de "Mariano", pronunciado com "r" brando, como o "r" de cara, por exemplo.
 


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sexta-feira, 4 de julho de 2014

A narrativa ausente

          "Decifra-me ou devoro-te!” O eco do desafio mitológico da esfinge de Tebas acompanha a divulgação das sondagens eleitorais. Na etapa final da campanha, não existem enigmas difíceis: a trajetória das intenções de voto diz tudo o que importa.
          Contudo, nas etapas prévias, o panorama é mais complexo. Os analistas têm destacado as informações sobre a vontade de mudança do eleitorado e os índices de rejeição da presidente que busca a reeleição.

          São dados relevantes na equação, mas não deveriam obscurecer um outro, que configura um paradoxo: o crescimento das intenções de voto nos candidatos de oposição continua longe de refletir a vontade majoritária de mudança. Se não interpretarem corretamente o paradoxo, os oposicionistas oferecerão a Dilma Rousseff um triunfo que ela não pode obter por suas próprias forças.
          Publicamente, o PSDB e o PSB asseguram que o crescimento das candidaturas de Aécio Neves e Eduardo Campos é só uma questão de tempo — ou seja, de exposição no horário eleitoral. Na hipótese benigna, eles não acreditam nisso, mas falam para animar suas bases.
A hipótese maligna é que se refugiam no pensamento mágico, acalentando o sonho de uma vitória por default. De um modo ou de outro, parecem longe de admitir o que as sondagens eleitorais insistem em demonstrar: ambos carecem de uma narrativa política capaz de traduzir o desejo majoritário de mudança.
          A candidatura de Eduardo Campos sofre de um mal de origem. O ex-governador de Pernambuco era, até ontem, um “companheiro de viagem” do lulismo, e sua vice, Marina Silva, fez carreira política no PT, ainda que sua dissidência já tenha uma história. Desse mal, decorre um frágil discurso eleitoral: a “terceira via”, ao menos na versão de Campos, é um elogio do “lulismo sem Dilma”.
          O discurso viola a verdade política, pois o governo Dilma representa, em todos os sentidos, o prolongamento dos mandatos de Lula. De mais a mais, é inverossímil, pois o eleitorado aprendeu que “Lula é Dilma” e “Dilma é Lula”.
A candidatura de Aécio Neves sofre de um mal distinto, evidenciado nas campanhas presidenciais de Geraldo Alckmin, em 2006, e de José Serra, em 2010: o PSDB não sabe explicar o motivo pelo qual quer governar o país. Oito anos atrás, Alckmin apostou suas chances na tecla da denúncia de corrupção.
          Há quatro anos, Serra investiu nas suas qualidades pessoais (a “experiência”) e no tema da “gestão eficiente”. A despolitização do discurso dos tucanos refletiu-se na apagada atuação parlamentar de Aécio, que nem sequer tentou transformar sua tribuna no Senado em polo de difusão de uma mensagem oposicionista.
          Não é fortuito que, a essa altura da corrida presidencial, suas intenções de voto permaneçam tão abaixo dos índices de rejeição à candidatura de Dilma.
          O PSDB tem algo a aprender com o PT. Nos seus anos de oposição, o PT construiu uma narrativa sobre o governo e a sociedade que, mesmo se mistificadora, sintetizava uma crítica fundamental às políticas de FH e indicava um rumo de mudança.
          Naquele tempo, o PT dizia que os tucanos governavam para a elite, acentuavam as desigualdades sociais e, no programa de privatizações, queimavam o patrimônio público no altar dos negócios privados. O PSDB desperdiçou seus anos de oposição sem fazer a defesa do legado de FH, propiciando a cristalização da narrativa petista.
          Consequência disso, não formulou uma crítica de conjunto aos governos lulopetistas, limitando-se a aguardar que, num passe de mágica, o poder retornasse às suas mãos. Agora, Aécio só triunfará se produzir, em escassos meses, a narrativa que seu partido não elaborou ao longo de 12 anos.
          Lula disse, várias vezes, e com razão, que “os ricos nunca ganharam tanto dinheiro como nos seus governos”. O PT governa para a elite, subsidiando pesadamente o grande capital privado enquanto distribui migalhas do banquete para os pobres, a fim de comprar seus votos.
           O contraste entre os valores envolvidos no Bolsa Empresário e os dispêndios no Bolsa Família contam uma história sobre o lulismo que o PSDB ocultou enquanto fingia fazer oposição. Terá Aécio a coragem de expô-la, mesmo às custas de desagradar ao alto empresariado?
          Nos três mandatos do lulopetismo, o governo promoveu o consumo de bens privados, descuidando-se da geração de bens públicos. Os manifestantes de junho de 2013 foram rotulados pelo PT como “despolitizados” por apontarem essa contradição, levantando as bandeiras da educação e da saúde (“escolas e hospitais padrão Fifa”).
No fundo, as multidões que ocuparam as ruas até serem expulsas pelos vândalos e depredadores estavam tomando uma posição sobre as funções do Estado. Terá Aécio a lucidez de reacender esse debate, do qual o PSDB foge sempre que o PT menciona a palavra “privatização”?
          O sistema político do país vive um longo outono, putrefazendo-se diante de todos. A “solução” oferecida pelo PT é uma reforma política que acentuaria seus piores aspectos, junto com a rendição do Congresso à pressão dos “conselhos participativos”.
          Mas a raiz da crise crônica está fora do sistema político: encontra-se na própria administração pública, aberta de par em par à colonização pelos partidos políticos. Aécio promete operar uma cirurgia puramente simbólica, reduzindo o número de ministérios. Terá ele a ousadia de, desafiando o conjunto da elite política, propor um corte profundo, radical, no número de cargos públicos de livre indicação?
          Ano passado, ouvi de uma assessora econômica tucana a profecia de que, antes do fim da Copa, um colapso econômico provocado pela inversão da política monetária americana decidiria a eleição presidencial brasileira.
          Era um sintoma da persistência do pensamento mágico que hipnotiza o PSDB desde a ascensão de Lula à presidência. Não: o Planalto não cairá no colo de Aécio. Para triunfar, ele precisa oferecer ao país uma narrativa política coerente.
 

Demétrio Magnoli é sociólogo(O GLOBO)

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