A
PROVA PESSOAL - e inconteste! - da religiosidade dedicada a intermedianeiros
vem das minhas mais tenras lembranças, e data do ano de 1953, quando corria em
peregrinação a imagem de Nossa Senhora de Fátima, vinda de Portugal para gáudio
e glória da grei católica do sofrido Povo Nordestino. A visita da Santa aos
Picos dar-se-ia em outubro daquele ano, mas os preparativos do povo para tão
raro acontecimento já vinham de longa data. Lembro-me de que, por ocasião das
farinhadas em junho, já todo mundo falava da grande festa e cuidava de
economizar um dinheirinho para tal fim. Havia passagens, roupas de guarda,
calçados para as mulheres e botinas novas para os homens. As despesas seriam enormes...
Turmas
de voluntários tapavam buracos, rebaixavam ladeiras e lombadas e roçavam
caminho para tornar trafegável a precária vicinal que ligava Jenipapeiro à grande Central de piçarra, construída havia
alguns anos, rasgando o sertão inculto para ligar Picos a nossa Capital, para
um lado, e ao resto do país, para o outro, através de Pernambuco. Para
completar a pequena verba que a Prefeitura de Picos mandara, foi preciso
arrecadar “esmolas” em pios leilões e doações espontâneas.
Antecipadas
consequências começaram a surgir dessa perspectiva de festa. O papa Pio XII,
devoto de Nossa Senhora, já antes incrementara a oração do terço no seio das
famílias como forma de combater a incipiente migração de católicos para os
cultos protestantes, em pleno florescimento após a Proclamação da República, em
1889, regime que tornou o Brasil, constitucionalmente, um país laico, ou seja,
em que se permitia a liberdade de culto. A vinda da imagem da Santa
portuguesa ao país serviu de estímulo ao redobrado fervor religioso que
se estabeleceu.
O
jenipapeirense não poderia ficar de fora desse engajamento mariano-fanático.
Assim, no campo espiritual, maior ênfase foi dada à reza do santo terço,
tornando-o bem mais longo em adendas orações e humildes queixas. Sentimento de
fervor e piedade era visível em cada rosto. Para nós, meninos, que nada entendíamos,
aqueles esticados terços eram verdadeiro suplício. A gente não podia se mexer,
se coçar, falar ou bater pestana. A rabiçaca logo vinha, com promessa de
alentada coça em caso de recidiva.
Por
outro lado, o comércio floresceu com o inusitado aumento da “troca” de
santinhos, terços e rosários, adquiridos no Juazeiro de Padim Ciço e "trocados" a peso de ouro nos dias de feira.
Contas brancas e azuis alternando-se na divisão dos mistérios (gozosos,
gloriosos, dolorosos etc.), enfeitavam, aos milhares, os pescoços de vetustas
senhoras e de frescas senhorinhas, todas possuídas desse fervor ingênuo e
carola que as levava a realizar intermináveis sessões de ladainhas e rosários,
ora em alevantadas vozes, ora apenas em sussurros dos quais só o leve movimento
labial era perceptível. Até veneráveis anciões deram de usar rosário no peito.
Após
esses preliminares, para muitos cheios de dolorosas expectativas, chega,
afinal, o grande dia da viagem. De véspera, caminhões e mais caminhões
paus-de-arara chegaram ao vilarejo, causando tropelias e espanto, que caminhão
era novidade só de poucos conhecida. Acorre-me à lembrança que um desses
caminhões - o carro do Expedito, como passou a ser referido – trazia na parte
de trás enorme cruzeiro de madeira como símbolo da fé e religiosidade de seu proprietário.
Aquilo mais parecia uma estratégia de negócio, vez que foi bastante procurado
pelos fiéis para nele embarcarem na santa peregrinação.
Era muita gente se alvoroçando,
arrumando fatiotas no saco de lona e vindo para perto dos caminhões a fim de
prevenir lugar e não perder a viagem. Resta referir que no dia anterior já
caravanas e mais caravanas haviam partido, a cavalo ou a pé, como meu tio Nanô
(Antônio Leôncio), para uma estirada de quase 15 léguas. Eu, então menino de 9
anos, era todo ansiedade. Afinal, pela primeira vez, iria conhecer a grande
cidade – os Pico, como se dizia na linguagem cabocla.
Da viagem propriamente dita, pouco
tenho a relatar, a não ser os percalços naturais, como o enorme calor do forte
sol do meio dia, a poeira vermelha da piçarra que logo a todos igualou num
único borrão, os catabis que ameaçavam jogar fora da carroceria os
bestifica-dos passageiros, além, é claro, da enorme alga-zarra de crianças,
jovens, adultos e velhos, todos deixando extravasar sua alegria pelo fato
inédito e talvez único de suas vidas: a viagem de caminhão para ver a Santa!
Das acomodações, nem é bom falar!
Numa fazenda situada onde depois funcionou o seminário, então propriedade de
Dr. Moura, dezenas de oiticicas, mangueiras e cajueiros serviram ao pernoite
dos peregrinos, cujas “tipóias” foram armadas de qualquer maneira. Quem não
trouxe rede, estendeu-se no chão, sobre o tapete macio de folhas secas. Afora
uma ou outra picada de formiga, a dormida foi tranqüila e calma. Parece que em
respeito à Santa, nem cobra deu as caras por ali.
Correu boato de um fato, pitoresco
para alguns e pecaminoso para outros, dando conta de que, altas horas da noite,
quando a multidão dormia nessa descuidada promiscuidade, uma senhora,
julgando-se "procurada" pelo marido, teria indagado, em voz baixa:
“ - Antão?
- Que que é, mulé?
- Antão, tu tá n´eu?
- Não, diacho; vá drumi, que hoje num é dia disso, não”.
Daí a pouco:
“ - Antão?
- O que é, mulé?
- Tu num tá mermo n´eu não, home?
- Já dixe que não; ora que coisa!
- "Antão", tão..."
- "Te aqueta, mulé!"
Teria o ato libidinoso se consumado?
Ninguém sabe. O fato não foi comprovado, embora muito se tenha cogitado da
identidade do espertinho que tentou tirar casquinha num sacrílego imbróglio
amoroso.
No dia seguinte teve almoço para
todos. O doutor Moura mandara abater um boi para servir àquela gente
conterrânea e amiga, talvez o último rasgo de generosidade dos Santos, conforme
costume do finado coronel Chico Santo, o “Chico Fartura”, como era conhecido,
que durante a vida jamais faltou com rancho e comida para o conterrâneo e
parente que lhe batesse à porta.
Desse memorável evento religioso,
conta-nos Renato Duarte (1995), em PICOS
- Os Verdes Anos Cinquenta, fato pitoresco, como segue:
No dia
22 de outubro de 1953 Picos vivenciou o maior acontecimento religioso de sua
história: a visita da imagem de Nossa Senhora de Fátima, na peregrinação pelo
Brasil. Na realidade, aquele foi um acontecimento extraordinário não só por ter
reunido a maior quantidade de pessoas já vistas na cidade, como também pela
ocorrência de uma inesperada demonstração de misticismo que iria dividir a atenção
dos fieis. (...) Ao chegar em frente à igreja, por volta das 17 horas, a imagem
foi colocada em um pedestal com pouco mais de dois metros de altura, construído
no meio do patamar, e voltada para a multidão que se aglomerava na praça Frei
Ibiapina. (...) Durante as celebrações religiosas ao longo do dia, três
crianças, com trajes de pastores, postavam-se ajoelhadas diante da imagem,
completando a recriação da cena da aparição em Fátima.
A essa altura, não longe dali, acontecia um fenômeno de
grande impacto popular e místico, e que sem dúvida contribuiu para empanar o
brilho da programação oficial. No momento da chegada da imagem em frente à
igreja, na tarde anterior, dezenas de pombos foram soltos, numa simbolização
aos apelos da paz feitos por Nossa Senhora, de acordo com os três videntes. Um
dos pombos, depois de sobrevoar a multidão, pousou na cabeça de uma camponesa -
uma matuta, como se dizia -, ali permanecendo apesar do tumulto que o
acontecimento gerou. Grande parte das pessoas que se encontravam no local
interpretou o fato como um milagre, e a jovem, que se chamava Maria, passou a dividir
com a imagem de Nossa Senhora de Fátima a atenção dos fieis. Em seguida, a
jovem foi conduzida em romaria até à casa onde se encontrava hospedada,
pertencente ao major Dirceu e localizada no atual nº 101 da rua Padre Cícero
Santos. Como o pombo se mantivesse pousado na cabeça da jovem durante o
trajeto, aumentou a crença do povo de que se tratava realmente de um milagre, e
o pequeno quarto dos fundos da casa onde ela havia sido alojada tornou-se um
local de intensa romaria. Apesar dos esforços dos padres em minimizar as
conotações místicas do fenômeno, não era pequeno o número de pessoas que
acreditavam estar diante de um novo milagre de Nossa Senhora. A romaria à casa
do major Dirceu só terminou quando Maria regressou ao seu local de origem. (p.
121/124)
Menino
do interior, matuto, deslumbrado e abestalhado com a "Cidade Grande",
estacionado a quase 200 metros do local em que se encontrava a imagem da santa,
não tinha como tomar conhecimento desse extraordinário acontecimento em que
toda a mística e religiosidade enviesada do povo brasileiro e especialmente do
nordestino se revelava de forma inequívoca e espetacular.
Da
festa propriamente dita, pouco posso contar. Só sei que jamais havia visto
multidão maior e tão compacta. A procissão, ao anoitecer daquele 23 de outubro
de 1953, clareou o céu com suas milhares de velas ardentes. A grande Avenida
Getúlio Vargas e adjacências, bem como o grande largo da igreja matriz (ali se
realizava a grande feira semanal), ficaram completamente tomados. No grande
patamar, erguia-se enorme cruzeiro, fortemente iluminado de alto a baixo. Tudo
grande e belo! E majestoso!
A
cerimônia era um-não-acabar-mais de
orações e cantos a retumbar na praça. Apesar de irradiados por diversas
amplificadoras, colocadas em pontos estratégicos, o som não passava de
zum-zum-zum em que não se distinguiam as palavras, mesmo porque a maioria era
em latim, como o "Te Deum Laudemur", o "Gloria In Excelsis
Deo", o "Magnificat, Magnificat". (Claro que na época eu não
sabia latim, como a quase totalidade dos conterrâneos que ali se encontravam.
Isso eu só viria a conhecer depois). Apenas aqui e ali entremeavam-se hinos em
português, como o "A Nós Descei, Divina Luz". Quando, porém, já quase
no final da celebração, o som do conhecidíssimo hino à virgem se fez ouvir, o
urro da multidão repercutiu igualmente ao reboar do trovão nos céus:
A treze de maio
Na
cova da Iria
No
céu aparece
A virgem Maria
Ao que a multidão,
piedosa e exultantemente estrondeava:
Avé, Avé, Avé Mariá
Avé,
Avé, Avé Mariá
Impressionou-me,
sobremaneira, o uníssono da multidão ao responder esse refrão ou dizer amém.
Começava num murmúrio e ia num crescendo até semelhar-se a um urro medonho e
coleante, como a multidão que serpenteava apertada pelo labirinto de becos e
ruas de acesso. Apoteose final, a queima de fogos de artifícios com suas
baterias e rojões ensurdeceu a praça e fez dispersar o centauro humano numa
debandada sem controle, em que se perdiam e se misturavam todos, com mães
aflitas procurando filhos, mulheres buscando maridos, véus pegando fogo na
chama das velas, chinelos e sapatos ficando, gritaria e atropelo como nunca se
vira, num verdadeiro
"estouro de boiada" humana.
Daquele
outubro memorável muitas coisas me ficaram indelevelmente gravadas. Andei de
carro pela primeira vez; também pela vez primeira conheci uma cidade de
verdade: os Pico, com sua casa de andar no alto do morro, aquela mesma
que a gente avistava do Viroveu, em manhã clara, do alto do chapadeiro. Bem
assim pudera ver e ouvir o ronco das motocicletas voadoras, com seu barulho
infernal e ensurdecedor. Disseram que um dos corredores naqueles
"besouros" sem asa era Carlos Luz, filho do prefeito Justino Luz.
Outrossim, para aquela festa, meu pai comprara um par de sapatos, dos quais
perdi um pé no ruge-ruge da retirada. O outro ficou inservível para uso, mas
guardado por muito tempo como objeto da inesquecível aventura. E afinal – pela
primeira vez – pudera experimentar, ou quase, o "docegelo" de um picolé! Mais de meio século depois,de tão profundamente
encravada que ficou em meu subconsciente, essa lembrança ainda me aflora à
mente e me faz eriçar os pelos de emoção...
Meio
dia, sol tinindo de quente. Junto aos caminhões enfileirados, o burburinho da
volta, a procura das e pelas pessoas para que ninguém perdesse a condução.
Num
carrinho móvel, um vendedor apregoa:
- Picolé, picolé! Geladim, geladim!
Ao meu lado, Chico de Antonino
solicita:
- Pai, compra um!
O
pai de Chico compra. Pelas chupadas que o garoto dá na mitigativa guloseima,
deduzo que deve ser muito gostosa.
- Pai – digo, por minha vez – também
quero um.
O pai, meu pai, bate no riscado,
caça, procura. Nem um níquel no bolso. Carrancudo, responde para o filho,
esperançosamente aflito:
- Compro isso não; é porcaria.
Inveja,
olhar comprido. De que tamanho? Sei lá! Fico apenas espiando, sofrendo. Em dado
momento, da boca do outro desprende-se um naco e cai no banco de madeira em que
ambos estamos sentados. Não pude evitar, foi instintivo. Pego a pequena porção,
que se derrete antes que alcance minha boca. Meus dedos, porém, ficam molhados.
Coloco-os na boca...
Dos olhos de meu pai escorre um
filete de lágrima.
Ai, doce (?) picolé da infância! O picolé
de... Fátima.
Autoria de João Bosco da Silva. Este texto faz parte do livro ainda inédito: DE PÉ - COXÓ.
Natural de Francisco Santos, tem dedicado seu tempo a escrever em verso e prosa. Mesmo tendo ficado ausente durante muitos anos, João Bosco conseguiu reacender a chama do amor à sua terra natal e tem contribuído significativamente com a nossa cultura, para tanto tem publicado alguns livros de teor autobiográfico.
Tem publicados os seguintes livros: Pensão Cacilda; Geralho; Viroveu, um sentimento interior(ano) e outras histórias; Jenipapeiro, a terra dos espritados – Memorial geopolítico; Placebo; Romanceiro dos Versejadores e Repentistas de Jenipapeiro.