sábado, 26 de dezembro de 2015

NOTA DE PESAR

          Como ele mesmo tem registrado, o blog anda meio parado e até ao e-mail não tenho dado a devida atenção. Embora tenha tomado conhecimento da passagem de Zé de Loura para outra dimensão, não acessei o e-mail nos últimos dias, portanto não tive acesso a mensagem do conterrâneo e amigo João Bosco da Silva.


Eis o registro:

          JOÃO BOSCO CUMPRE O DOLOROSO DEVER DE COMUNICAR AOS PARENTES, AMIGOS E CONTERRANEOS O FALECIMENTO DE SEU IRMÃO JOSÉ DO PATROCÍNIO, VULGO ZÉ DE LOURA, OCORRIDO HOJE AS 15:30Hs, EM ARAGUAÍNA. DESDE JÁ AGRADECE AS ORAÇÕES EM FAVOR DE SUA ALMA.
OBRIGADO.

         José do Patrocínio, conhecido em vida por Zé de Loura, foi vereador em Francisco Santos, mas a sua principal atividade foi o comércio, onde atuou durante a vida inteira. Inicialmente estabelecido em Francisco Santos, depois, como uma grande parte dos Franciscossantenses, partiu para outras terras em busca de melhores dias, pois a nossa terrinha já não supria todas as suas necessidades.
          Nasceu no dia 21 de Abril 1938(77 anos). Casado com Maria de Lurdes Santos Silva(Lurdinha), filha de Osvaldo Santos. Deixa os filhos, Francirene de Lurdes(Cirene), Arlene Maria, José Rogério e Francisco Helder.

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sábado, 5 de setembro de 2015

A NOVA MATRIZ MORAL


          Roubar, sempre se roubou, e muito, no Brasil. Na era Lula, a novidade foi a introdução de uma nova categoria moral, o “roubo pela causa”, que se justifica pela nobreza dos seus objetivos e faz de seus autores guerreiros do povo brasileiro. Antigamente, se roubava só por sem-vergonhice individual, mas com a tolerância, e até o estímulo, ao roubo pela causa popular (eternizar o partido no poder para levar os pobres ao paraíso) já não se sabe onde começa um e termina outro, resultando na certeza de que nunca na história deste país se roubou tanto.
          Outra novidade, que ajudou a gestar a crise política e ética que nos assola, foi a institucionalização da corrupção, ocupando cargos importantes em todo o governo e usando-os para enriquecer o partido — e eventualmente alguns “guerreiros”, que ninguém é de ferro. Sim, quando se rouba para um partido, todos os outros são roubados, porque se concorre às eleições com mais recursos e com vantagens ilegais, para fraudar o processo eleitoral. Na nova matriz, lavar propina como doação no TSE é legal: o caixa três.
           Talvez todos os partidos, se puderem, roubem, mas só quem está no governo tem o poder de nomear e dar as vantagens que resultam em propinas e extorsões para o partido. É muito pior para o país do que o roubo individual.
           Uma parte dessa “nova moral” da era Lula certamente vem de suas origens sindicais, em que o certo, o direito e o justo é conseguir o melhor para seus companheiros, e o resto que se dane. A outra parte parece uma herança dos tempos da luta armada, quando a palavra de ordem era “O que é o roubo de um banco comparado à fundação de um banco?”, de Bertolt Brecht.
          Hoje, Marcelo Odebrecht diz que fica mais zangado com a filha que entrega quem roubou do que com a filha ladra, mas eu ficaria muito mais decepcionado com uma filha que roubasse para um partido do que para si mesma, confessasse o erro e assumisse as consequências. Essa velha moral família Soprano, da omertà odebrechtiana, é a confirmação de que vivemos numa cleptocracia, onde quadrilhas disputam territórios e saqueiam o Estado para se manter no poder.

Por Nélson Motta, jornalista, compositor, escritor, roteirista, produtor musical e letrista. Escreve para os jornais O Globo, e O Estado de São Paulo.

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quarta-feira, 22 de julho de 2015

JUSTA HOMENAGEM

          A última vez que conversei com a arqueóloga Niède Guidon, fiquei tão triste que mal pude me conter. Em minha mente, ficou a imagem de uma leoa ferida e cercada de hienas famintas. A velha professora estava triste, desencantada, amarga. Lá pelas tantas me disse: “Hoje me arrependo de ter largado tudo para  me entregar, de corpo e alma, a este projeto aqui”. Não era força de expressão: Niède Guidon investiu tudo num projeto que não é dela; é da humanidade inteira: a criação do Parque Nacional da Serra da Capivara, um dos mais belos do Brasil.
          Venho acompanhando a  luta da arqueóloga que inseriu o Piauí no mapa-múndi e transformou  São Raimundo Nonato num referência mundial em termos de arqueologia. Antigamente, quando alguém falava do Piauí, o máximo que as pessoas sabiam é que se tratava do  “Estado mais pobre” da Federação. Hoje, invariavelmente, fazem perguntas sobre a Serra da Capivara.

          Seria exaustivo enumerar aqui as brigas que Niède comprou, as agressões que sofreu, as lágrimas que verteu em defesa do Parque.  Ainda hoje acusam-na, levianamente, de “furtar peças valiosas para vender na França”. Para os políticos populistas, Niède é uma “estrangeira (sic) que persegue os pobres caçadores da caatinga”; para os  cretinos de plantão, a pesquisadora não passa de  uma “mercenária e chantagista”. Poucos falam da infraestrutura do Parque onde gente e bichos são tratados com o mesmo respeito. Quem já teve oportunidade de visitar a Serra da Capivara pode comprovar isso sem a necessidade de maiores explicações.

          Mas Niède, além de pesquisadora, é alguém com  aguda visão prospectiva: sabe que,para tornar o Parque autossustentável, precisa da presença de turistas endinheirados, gente que já se cansou de praias, desertos e pirâmides.O problema é: como fazer essas pessoas chegarem a São Raimundo Nonato?  Ela tem a resposta na ponta da língua: com um aeroporto decente, com hotéis confortáveis, com saneamento básico, com  tratamento digno ao visitante.

          Começou aí sua mais sofrida batalha. Há mais de vinte anos, vem falando,  explicando, brigando, cobrando a construção do aeroporto de São Raimundo Nonato.  Finalmente, a obra que vem se arrastando por entre o cipoal burocrático está prestes a ser inaugurada.

          Por minha conta e risco, levei ao Conselho Estadual de Cultura a seguinte proposição: a obra, a ser inaugurada brevemente, deverá chamar-se Aeroporto Niède Guidon. A proposta foi prontamente aprovada por todos os conselheiros, e o presidente da CEC, prof. M. Paulo Nunes, está preparando expediente a ser encaminhado ao Governador do Estado com o parecer do Conselho.
          Que ninguém venha alegar que a lei “proíbe esse tipo de procedimento”. Em todos os lugares do país, há exemplos de homenagens prestadas a políticos - muito vivos - de todos os matizes ideológicos. Niède Guidon, por tudo o que fez pelo Piauí, pelo Brasil e pela humanidade, é  merecedora da homenagem. Assim seja.

Por Cinéas SantosPoeta, cronista, intelectual, professor, agente cultural, advogado, editor e livreiro brasileiro. Pertenceu ao Conselho Estadual de Cultura. Foi presidente da Fundação Municipal de Cultura de Teresina. Proprietário da Corisco (livraria e editora), publicou vários autores piauienses. Professor de Português e Literatura de várias gerações de estudantes piauienses. Foi um dos idealizadores e organizador do SaLiPi (Salão do Livro do Piauí), evento que anualmente reúne livreiros, editoras e público leitor em torno a diversas atividades culturais, palestras, debates, oficinas e exposições. Também é proprietário da Oficina da Palavra, espaço cultural teresinense, e coordenador do grupo A Cara Alegre Do Piauí, projeto de interiorização da cultura – música, literatura e artes plásticas. Cineas Santos é também o autor da letra do Hino do município de Teresina, em parceria com o músico Erisvaldo Borges, que compôs a melodia.


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domingo, 5 de julho de 2015

A FESTA DA PADROEIRA

          Na década de 1950, a cidade de Francisco Santos-PI, ainda não existia. O povoado de Jenipapeiro, que a antecedeu, era formado, basicamente, por poucas ruas, com o traçado de dois quadriláteros. No primeiro deles havia uma pequena igreja católica plantada no centro da rua de Baixo com seu portão principal apontando para o norte. No outro havia o mercado público, circundado por três ruas. Várias outras casas espalhadas integravam aquele povoado, como as do Saquim, mas que ainda não tinham o formato de ruas.
          O evento mais importante da localidade realizava-se todos os anos em outubro, considerado o mês de Maria, mãe de Jesus e padroeira daquele distrito. Era um momento aguardado e desejado, principalmente pelas crianças. Uma série de providências era adotada pelas famílias, como a compra de uma roupa especial e a engorda das galinhas e dos capões. A ânsia pela chegada da data tão festiva era muito grande, a ponto de se contar nos dedos os dias que ainda faltavam.
          Pelo menos em quatro momentos os festejos se desdobravam. O leilão das oferendas no adro - espaço externo e calçado das igrejas - era um dos pontos altos. No local apropriado era posta uma mesa onde eram colocadas as oferendas. As pessoas interessadas iam se acercando e se preparando para os lances. Em alguns momentos era perceptível o enfrentamento de egos, com vistas a arrematar alguma jóia. À instigante provocação de quem dá mais, nova valor era proposto. Era claramente observável uma disputa pelo destaque.
          Em volta desse ambiente, com alguns metros de distância, eram instaladas as bancas das boleiras, das gostosinhas ou raspadinhas, galinhas recheadas e outras guloseimas. Era exatamente aqui que as crianças entravam em delírio. Com alguns tostões no bolso, ficava difícil escolher o que comprar. Era preciso fazer opções: o pão de ló de Biluca ou uma raspadinha(suco de várias cores com gelo raspado)?
          A missa principal, geralmente por volta das dez horas, era muito concorrida. Poucas pessoas bem acomodadas. Do lado direito agrupavam-se as pessoas moradoras do povoado; à esquerda reuniam-se os ribeirinhos dos Macacos, das Canas, do Diogo e de outras localidades. A maioria de pé ou de joelhos, conforme o ritual. Destacavam-se as senhoras zeladoras do Sagrado Coração de Maria, com roupa de gala, fitas vermelhas no pescoço, contendo na ponta uma grande medalha, acho que de Maria Santíssima. O padre, de costas para os fiéis, com exceção do tempo em que fazia a homilia. Muito atentas, as pessoas procuravam mentalizar as orientações e os ensinos, que, depois, eram objeto de intensos comentários.
          Nessas missas especiais, o que mais impressionava, naquelas ocasiões, era o sofrimento de ficar tanto tempo de joelhos. Não menos sofrido era aguardar, em jejum, o momento de receber a hóstia, lá pelas onze horas da manhã. Ao terminar o ato litúrgico, quase ao meio-dia, muitos estavam a ponto de desmaiar.
          Entretanto, eram momentos de muita alegria e devoção. Muitas vezes sob a emoção do clima de festa, o pipocar dos fogos, o perfume que exalava aos quatro cantos, a elegância das roupas de guarda. Ao encerrar-se a missa, as pessoas se dispersavam, levando consigo uma sensação intraduzível de conforto e esperança.
          Os jovens tinha sua festa à parte, e não era aquela oferecida pela Igreja. O passeio publico que circundava o mercado era o lugar de desfile, com um objetivo bem definido: um flerte, um sinal qualquer que ensejasse um namoro. Naqueles momentos, os olhares eram mais atentos, e até o coração, vez por outra, batia mais forte. Se durante o dia a colheita não tivesse sido alcançada, ainda havia esperança no baile à noite.
          Por ultimo, o fechamento dessas comemorações era a procissão, lá para o final da tarde. A imagem do Sagrado Coração de Maria era colocada no andor e conduzida entre duas filas indianas de fiéias. algumas rezas eram feitas durante o percurso, predominando, todavia, a entonação de vários cantos religiosos.
           Naquele tempo havia uma tradição de se conduzir a santa virada para o povo. ao se aproximar da igreja, no retorno, invertia-se essa posição. Conta-se que numa dessas festividades, lá pelo final da década de 1950 ou início da de 1960, o périplo da procissão se aproximava do seu final quando o velho Moisés - tio de meu pai e meu padrinho - teria instado os condutores do andor: "Virem a santa!". E todos responderam efusivamente: "Vivaaaaa!". Ele repetiu o pedido de forma enérgica: "Virem a santa!". E o povo novamente respondeu: "Vivaaaaa!". Inconformado e zangado, gritou em alto e bom som: "Virem esta rapariga!" Não há provas de que tal fato aconteceu, mas essa história é conhecida de muitas pessoas contemporâneas do ocorrido. Se tal despautério foi efetivamente cometido, certamente o Imaculado Coração de Maria, conhecedor das boas intenções do zeloso servidor, exculpou-lhe sem a aplicação sequer de algumas penitencias.
          Numa dessas festas da padroeira, calcei, pela primeira vez, um par de sapatos que me pai comprou no Juazeiro do Norte-Ce. O formato dele me parecia muito feio, era como se estivesse com dois pés de patos. Tinha a impressão de que as pessoas me olhavam com deboche. Decepcionado com aquela novidade, tratei logo de aposentá-lo precocemente.
          O tempo passou e os costumes já são bem diferentes. O grau de devoção aparentemente diminuiu. A terrinha, que já foi considerada como da santidade, distancia-se cada vez mais do seu apego à religiosidade, mergulhada que se encontra nos modismos e modernidades do mundo globalizado. Embora a celebração da festa da padroeira prossiga ano após ano, no meu modo de sentir já não mais produz as emoções e os sentimentos puros que embalavam as almas dos fiéis daquela época.
          As gerações mais novas certamente desconhecem esse passado distante. As mais velhas, entretanto, quando se veem envolvidas em lembranças desses momentos felizes, revivem, saudosamente, aquelas vibrações suaves, indelevelmente gravadas na alma de cada um. Pelas suas mentes descortina-se aquele mundo mágico onde interagiam sonho e realidade, imprimindo sensações agradabilíssimas.
José Carmo Filho, nascido no Povoado Jenipapeiro, hoje cidade de Francisco Santos-PI. Reside em Brasilia - DF, desde 1966, onde aprimorou a sua formação educacional, constituiu família e inseriu-se no mercado de trabalho, através de concurso público. Embora intelectualmente preparado, nunca tinha se aventurado a colocar em livros suas idéias, suas experiências. Ao completar 70 anos, brindou-nos com o lançamento do seu primeiro livro Viandante da Vida, dando-nos a oportunidade de conhecer esse grande talento para as letras. Agora volta a nos presentear com este Artigos e Crônicas, onde trata de diversos temas que afligem a sociedade atual e outros temas, como esta crônica que postamos acima.

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quarta-feira, 1 de julho de 2015

Doente do corpo e da alma

          
          Muitos acham que o futebol brasileiro ainda não chegou ao fundo do poço e que o próximo fracasso será não participar da Copa de 2018.

          Outro caminho, que agrada a muitos, é a diminuição da importância da seleção. Após os 7 a 1, quando se esperava uma comoção nacional, como na Copa de 1950, a maioria levou na gozação, como se dissesse: “Existem coisas mais importantes no país”. Foi uma demonstração da evolução da sociedade?

          São múltiplas as razões para a queda de nosso futebol e, isoladamente e em pouco tempo, nenhum treinador, dirigente, mágico nem Neymar vai resolver o problema. Muito menos o grupo de notáveis que pediu Galvão Bueno, com a participação de seus amigos.

          O futebol brasileiro está doente, há muito tempo, do corpo e da alma. Para tratá-lo, é necessário um grupo de profissionais especializados, independentes e competentes, dentro e fora de campo, e que tenham tempo. Não é coisa para curiosos, oportunistas nem para ex-atletas que não se prepararam tecnicamente. A primeira meta deveria ser trazer o doente à realidade e acabar com as mentiras, como a de que o Brasil produz craques a cada esquina, além de reconhecer a evolução dos adversários.

          A primeira divisão do futebol está nos grandes times da Europa (Barça, Real, Bayern e outros). O futebol que se joga no Brasil é, com boa vontade, da segunda divisão. Falta à seleção um técnico com experiência e sucesso na Primeira Divisão. Colocar Dunga ou outro treinador brasileiro é o mesmo que por um técnico da Série B do Brasileirão em um dos grandes da Série A, sem passar por trabalhos intermediários. Evidentemente, esse é apenas um de dezenas de problemas.

          Na parte técnica e tática, o futebol brasileiro vive de lances isolados, de espasmos. Há pouco jogo coletivo. A seleção atual tem enormes espaços entre os setores, como os times brasileiros. Os volantes avançam na marcação, e os zagueiros ficam muito atrás. Mas nossa principal carência é a falta de um excepcional atacante à frente de Neymar e de um grande meio-campista, que atue bem de uma intermediária à outra. Se tivéssemos esses dois jogadores, além de Neymar, o time teria grandes chances de brilhar, mesmo com Dunga, Gilmar Rinaldi e Del Nero. Foi o que ocorreu na Copa de 2002.

          Nosso futebol está doente também da alma e precisa de ajuda psicológica. O prestígio e a marca do futebol brasileiro ainda são valiosos, acima da qualidade técnica e emocional dos atuais atletas. Diante de tanta pressão, expectativa e responsabilidade, eles jogam menos do que sabem. Neymar, contra a Colômbia, teve uma crise histérica de chiliques. Thiago Silva, que estava entre os melhores zagueiros do mundo, deixou de estar, por dois erros graves, idênticos, seguidos e inexplicáveis. Já criticar os jogadores, que seriam indiferentes à seleção, é injusto e não tem nada a ver.

          Desequilíbrios emocionais sempre existiram. Até hoje, ninguém sabe, nem Ronaldo, se ele, na final da Copa de 1998, teve uma convulsão ou uma síndrome de conversão psicomotora (piti). Isso mostra a fragilidade humana, mesmo nos craques.

Por Tostão. 
Jogador genial, aposentado precocemente devido a um descolamento de retina. Formado em medicina é hoje um dos maiores cronistas do futebol brasileiro. Escreve na Folha de São Paulo às quartas e domingos.



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quinta-feira, 18 de junho de 2015

Raça como ofício


          Se existem transgêneros, o que impede o advento de indivíduos transraciais?

          A professora disse que não. “Acho que devemos perguntar a outro estudante”, decidiu Rachel Dolezal, rejeitando a participação de uma jovem hispânica de pele clara no exercício pedagógico destinado a expor a classe a “experiências raciais e culturais”. Por que não? “Rachel argumentou que eu não parecia hispânica e que, por isso, duvidava da minha capacidade de partilhar experiências de discriminação racial”. O episódio ocorreu anos atrás, na Eastern Washington University, e não viria à luz se a identidade racial da própria professora não tivesse sido impugnada. Dolezal não é negra, mas branca, esclareceram seus pais, provocando um pequeno escândalo que se concluiu pela renúncia da ativista afro-americana a seu cargo na NAACP, a venerável organização negra fundada em 1909. A fraude diz algo sobre a ativista — mas muito mais sobre as engrenagens perversas das políticas de raça.
          “Eu não simulo um rosto negro como performance”, defende-se Dolezal. “Identifico-me como negra. Isso se dá num nível muito conectado e real, ligado a uma vivência, não é uma mera representação visual.” Ela nasceu em 1977, numa família de origens alemãs, tchecas e suecas. Seus pais, missionários cristãos, adotaram três crianças afro-americanas e uma haitiana durante sua adolescência. Nas fotos da época, Rachel aparece como uma garota branca e sardenta, de olhos verdes e cabelo claro.
          Se a aparência é igual à essência, como ela sustentaria diante da estudante hispânica, aquela Rachel jamais poderia oferecer testemunhos sobre discriminação. Mas, obviamente, o corpo humano tem alguma maleabilidade. “Certamente não me escondo do sol”, admite a ativista, reconhecendo que “estilistas de cabelos negros estilizaram meu cabelo de muitos modos diferentes”. Nas fotos atuais, Dolezal é suficientemente negra para discorrer sobre suas dolorosas experiências pessoais de discriminação — e, ainda, para julgar a veracidade da identidade racial de outros.
          Nos EUA, as leis de discriminação racial separaram a essência da aparência. Sob a regra da gota de sangue única, consolidada na Lei da Integridade Racial do Estado da Virgínia, em 1924, a existência de um único ancestral não branco excluía o indivíduo da categoria dos brancos. Nessa regra, que aboliu oficialmente a miscigenação, encontra-se a base do sistema de classificação racial do país. Como efeito dela, surgiram negros de pele relativamente clara. Um deles, Walter Francis White, olhos azuis e cabelos loiros, chefe-executivo da NAACP entre 1929 e 1955, passou-se por branco para investigar os linchamentos da Ku Klux Klan e reuniu as evidências que possibilitariam o banimento da organização. Muitos milhares de outros, para escapar à discriminação, fizeram o passing definitivo, isto é, queimaram seus documentos, apagaram os rastros de suas ancestralidades e desapareceram no universo dos brancos. Numa época diferente, Dolezal tentou o salto inverso, fazendo o passing na direção da militância afro-americana.
          O caminho começou a ser trilhado em 2000, quando Dolezal ingressou na Howard University, uma instituição voltada historicamente para os negros, com um pedido de admissão que sugeria a identidade afro-americana. Dois anos depois, alegando que sua família branca poderia arcar com as anuidades, a universidade cortou sua bolsa de estudos. Ela ainda não tinha “um rosto negro” — e processou a Howard por discriminação “com a finalidade de favorecer estudantes afro-americanos”. Na sequência, converteu-se em ativista afro-americana, galgou a hierarquia da seção local da NAACP e passou a lecionar em diversos cursos acadêmicos focados em temas raciais. “Minha vida tem sido uma sobrevivência, e as decisões que tomei ao longo do percurso, incluindo minha identificação racial, foram adotadas para sobreviver”.
          Verdade e mentira não são preto no branco, quando se trata de raça. Uma amarga disputa judicial distanciou Dolezal de seus pais: em 2010, ela obteve a guarda de um dos irmãos adotivos, que cria como se fosse seu filho num “ambiente de celebração da cultura afro-americana”. Nos formulários administrativos, ela declara ancestralidades negra, indígena e branca. Segundo seus pais, haveria algum antepassado indígena na família, mas nenhum negro. A ativista afirma que viveu numa tenda indígena, na infância. Algo assim ocorreu de fato, brevemente — mas com seus pais, três anos antes de ela nascer. De certo modo, a fraude continuada sedimentou-se como experiência e identidade.
          Aparência é essência? No Brasil, o triunfo do racialismo depende da abolição da consciência da mistura. Nossas leis raciais têm a mesma meta que a Lei da Integridade Racial da Virgínia: traçar uma fronteira nítida, indelével, entre “brancos” e “negros”. Contudo, na falta da tradição de discriminação estatal americana, o expediente utilizado baseia-se na aparência. Para efeitos de concursos de ingresso ao ensino superior e ao funcionalismo público, serão negros os que assim se declararem — e forem aceitos como tais por improvisados “tribunais raciais”. Nesse sistema, não há fraude, mas uma operação social de reinvenção identitária: todos os que puderem exibir convincentemente “um rosto negro” serão rotulados como negros.
          Se existem transgêneros, o que impede o advento de indivíduos transraciais? Dolezal, tudo indica, articulou uma estratégia de “sobrevivência” em torno de sua nova identidade racial. O “rosto negro” abriu-lhe veredas para conquistar prestígio político e ascender profissionalmente, numa sociedade que continua a distinguir as pessoas “pela cor de sua pele”, não pelo “conteúdo de seu caráter”. Por aqui, a expansão das leis raciais não provoca mudança alguma nos nossos ossificados padrões de exclusão social — mas oferece múltiplas oportunidades individuais, na vida acadêmica ou na carreira profissional. A raça torna-se ofício.

Demétrio Magnoli é sociólogo.

terça-feira, 12 de maio de 2015

Clima de barata voa


          O clima no poder é de barata voa, cada um tentando se “descolar” do outro e se esfalfando para salvar a própria pele. Aliás, esse é o verbo da moda em Brasília: todo mundo tenta se “descolar” de todo mundo.

          O PT se “descola” da presidente Dilma Rousseff e se agarra ao ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Depois de fugir de um pronunciamento pela TV no Primeiro de Maio, Dia do Trabalho, a presidente foi empurrada para fora da propaganda do seu próprio partido, terça-feira à noite. E a grande estrela foi, ou era para ser, Lula. O que é muito estranho.

          Afinal, Dilma já bateu no fundo do poço, com seus míseros 13% de aprovação, e nem fazendo muito esforço para errar será capaz de cair mais ainda. Já Lula está em pleno processo de queda. Já perdeu 21 pontos, segundo as últimas pesquisas, e muito possivelmente continua deslizando ladeira abaixo junto com o governo que patrocinou e o partido que criou.

          O PT, portanto, parece viver aquela clássica situação: se ficar, o bicho Dilma come; se correr, o bicho Lula pega. Ponha Dilma ou ponha Lula na TV, a sangria e os panelaços continuam.

          Se o PT tenta se “descolar” de Dilma, a recíproca é verdadeira. Foi o ministro da Comunicação Social, Edinho Silva, – do PT, frise-se – quem declarou a repórteres que é “um erro” misturar cotidianamente o governo ao partido e que não cabe ao governo, mas ao partido, responder sobre o último panelaço (o de terça, durante o programa petista).

          Entre a presidente e o PT, Lula fica com uma terceira entidade: ele mesmo. Tenta se “descolar” das lambanças do PT e dos erros abundantes da sucessora, mas precisa do PT, tanto quanto o PT precisa dele, e não pode bater de frente com Dilma nem com um governo que ele critica há tempos, de manhã, à tarde e à noite. Afinal, o partido é ele, e Dilma só virou o que virou por sua culpa, sua máxima culpa.

          O resultado de tanto cola-descola é que o programa de TV do PT ficou sem pé nem cabeça, Lula decidiu satanizar a terceirização da mão de obra e Dilma saiu da tela para virar espectadora, enquanto o PMDB chamou o PT às falas, cobrando que suas bancadas assumissem as restrições trabalhistas e previdenciárias determinadas pela presidente. Ou seja: o PMDB obrigou o partido do governo a se comportar como partido do governo.

          E, afinal, contra quem e contra o quê foram os panelaços? Será que o 8 de Março foi só contra Dilma? Será que o da terça-feira, durante o programa do PT, foi só contra o PT? E será que nenhum dos dois foi contra Lula? Ou será que os panelaços passados, presentes e futuros foram, são e serão contra Dilma, Lula e o PT?

          Por mais que Lula tente se “descolar” de Dilma, Dilma tente se “descolar” do PT e o PT tente se “descolar” de Dilma, eles estão todos colados, senão para sempre, seguramente hoje, nestes tempos de crise. E não há remédio para esse trio de siameses, a não ser uma cirurgia radical, como a que Marta Suplicy fez e outros estão na fila para fazer.

          É nesse clima que o velho PT de guerra passa por situações nunca antes imaginadas, como manifestações históricas, panelaços, buzinaços e o circo no plenário na votação do ajuste fiscal, com a oposição batendo panela e as galerias jogando dólares falsos com as caras de Lula, Dilma e Vaccari. O petista Weliton Prado, que votou contra, corre o risco de virar herói.

          Se Lula acha que radicalizar contra a terceirização será suficiente para reverter o clima e reaproximar o PT das bases, dos sindicatos, das massas e da opinião pública em geral, pode estar tremendamente enganado. Pois, se algo realmente se descolou de algo, foi o PT que se descolou da maioria do eleitorado brasileiro.

          Fachin. É inacreditável que Dilma tenha levado nove meses para indicar o novo ministro do Supremo e tenha escolhido um procurador que atuava simultaneamente como advogado. É inconstitucional e o STF é justamente o garantidor da Constituição.


Por Eliane Cantanhêde, colunista do jornal o Estado de São Paulo.

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terça-feira, 17 de março de 2015

"Leniência com a corrupção".


          "A criação do Universo foi a primeira ocasião para a corrupção prosperar. Com o diabo à espreita, a “obra” foi realizada em seis dias, sem licitação. Ao que se saiba, não houve suspeita quanto à idoneidade do Criador. À época, porém, não existiam governos, empreiteiras e políticos.

          No Brasil atual, até frases nos envergonham. O advogado do lobista Fernando Baiano foi franco: “Sem uma composição ilícita, não se coloca um paralelepípedo no chão”. Na mesma linha, o ex-diretor da Petrobras Paulo Roberto Costa — tratado carinhosamente por Lula como Paulinho — afirmou que “as doações de campanha são empréstimos a juros altos”. O óbvio é deprimente.

          De fato, a promiscuidade é a regra. Nas eleições de 2014, empresas da Lava-Jato doaram cerca R$ 400 milhões para políticos de diversos partidos. Dentre os 27 integrantes da CPI da Petrobras, 15 foram agraciados com doações que somaram R$ 3 milhões. Por outro lado, no ano passado, as empreiteiras receberam R$ 3,6 bilhões somente da União. É a oração de São Francisco de Assis às avessas.

          Na Petrobras, como o lema era “ou dá ou desce”, as empreiteiras não tiveram pudor. Formaram um “clube” fechado e impediram que centenas de empresas brasileiras — e outras tantas do exterior — tivessem a oportunidade de prestar serviços à estatal. O cartel lucrou com contratos superfaturados por muitos anos. Não há notícias de que algum empresário tenha se encontrado com o ministro da Justiça — dentro ou fora da agenda ministerial — para denunciar a “extorsão”. Sequer houve um telefonema para Dilma ou Lula para contar-lhes que o “Paulinho” e meia dúzia de outros corruptos estavam lhe enfiando a faca no pescoço.
          Após a lista de Janot, empresários e políticos — principalmente os governistas — estão em pânico. Conforme as delações, até o caixa da campanha de Dilma em 2010 foi abastecido por recursos desviados da Petrobras, travestidos de doações legais. Na prática, o Tribunal Superior Eleitoral lavou o dinheiro.

          O problema é que quando a selva pega fogo, os bichos se unem. Jamais vi tantas autoridades tentando blindar empresas envolvidas em corrupção, com o lenga-lenga de evitar que elas quebrem, o país pare e o desemprego aumente. Bobagem.

          A economia já estava estagnada antes da Lava-Jato. As empresas, mesmo declaradas inidôneas, poderão manter os contratos em andamento e até celebrar aditivos, a exemplo da Delta Construções, que chegou a receber R$ 134 milhões do governo em 2014. Além disso, “quem gera emprego é a obra, e não a empreiteira”, como disse o procurador do Ministério Público junto ao TCU, Júlio Marcelo.

          Quanto ao fato de estarem endividadas, as empresas devem fazer o dever de casa. Enxugar despesas, vender ativos para reforçar o caixa e, se for o caso, entrar com pedidos de recuperação judicial, como tantas outras empresas estão fazendo em função da situação econômica do país. Ou será que o BNDES irá gerar um Proer para o cartel?

          Para atenuar as suas dificuldades e obter todos os benefícios da Lei Anticorrupção, as empresas deverão colaborar, efetivamente, com as investigações do Ministério Público Federal (MPF), instituição que tem legitimidade e, sobretudo, independência para celebrar os acordos de leniência. Este caminho já foi seguido por seis empresas de menor porte.

          Curiosamente, a maioria das grandes empreiteiras prefere barganhar acordos de leniência na Controladoria-Geral da União, órgão da Presidência da República. Lá, pretendem admitir malfeitos, detalhar os ilícitos (a parte confessável, pois a CGU não tem as informações completas das delações, que só os procuradores que compõem a Lava-Jato possuem) e devolver o que roubaram. Assim, continuarão a fazer contratos com o governo, incluindo empréstimos nos bancos públicos. Nem multas irão pagar, pois a lei é recente e não retroage para prejudicá-las. A boa vontade do governo contribuirá para que as empresas e os seus dirigentes segurem a onda e a língua junto ao MPF e ao juiz Sérgio Moro. A pizza está no forno.

          O receio do governo é que novas delações premiadas e acordos de leniência celebrados por empresários e empresas com o MPF possam levar o maior escândalo de corrupção da história do país à porta do Palácio do Planalto. Afinal, qualquer fato adicional poderá se tornar o Fiat Elba de Dilma, a fagulha do impeachment.

          Domingo, dois milhões de pessoas foram às ruas. No Brasil, país em que há roubo na colocação de qualquer paralelepípedo, o essencial é a reconstrução da ética e da moral. Por enquanto, “obra” sem qualquer suspeita, só a do Criador."

Gil Castello Branco é economista e fundador da organização não-governamental Associação Contas Abertas. Publicado no Jornal O Globo de hoje. 

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quinta-feira, 12 de março de 2015

PREGAÇÃO SOLITÁRIA

                José Antônio Reguffe se tornou um especialista na arte de criar constrangimentos a seus pares. Em 2006, quando foi eleito deputado distrital em Brasília, seu primeiro ato foi renunciar às mordomias e aos benefícios do cargo. Nada de carro, motorista, verba indenizatória ou 14º e 15º salários. Enfrentou como consequência a indiferença dos colegas, mas a iniciativa repercutiu bem.
          Na eleição seguinte, em 2010, tentou uma vaga no Congresso e acabou sendo o deputado federal mais votado do país em números proporcionais. Na Câmara, repetiu o exemplo. Dispensou assessores, devolveu passagens de avião, recusou cotas e auxílios disso e daquilo.
          Resultado: apesar das ácidas críticas dos parlamentares, em 2014 ele saiu das urnas com o título de mais jovem senador da história do Distrito Federal. Na começo do mês, logo depois da posse no novo cargo, Reguffe anunciou que estava abrindo mão de uma série de regalias destinadas aos nobres senadores.
          Em caráter irrevogável, ele não aderiu ao plano de saúde que reembolsa serviços médicos sem nenhum limite. Zerou os gastos com verba indenizatória e passagens aéreas – respectivamente, 15 000 e 6 000 reais por mês. Cortou pela metade os gastos com funcionários do seu gabinete, reduzindo o total de assessores de 55 para doze. E, como fizera na Câmara, abdicou do auxílio-moradia de 3 800 reais – uma ajuda esdrúxula para os parlamentares da capital.
          Durante a campanha, Reguffe foi duramente criticado pelos adversários. “Ele usa a austeridade como demagogia. Em oito anos como parlamentar, não aprovou nenhum de seus 34 projetos”, disse, durante a campanha, o então candidato do PT ao Senado, Geraldo Magela. O petista, que tinha a máquina do governo a seu dispor, terminou a disputa em terceiro lugar – e gastou 3,8 milhões na campanha, dez vezes o orçamento declarado por Reguffe.
          Diante da aprovação nas urnas, o novo senador do PDT não pensou duas vezes: “Se os colegas fizerem a mesma coisa, economizaremos mais de 1 bilhão de reais dos impostos pagos pela população”. Na semana passada, Reguffe chegou ao Senado dirigindo o próprio carro. Foi barrado pelos seguranças e teve de se identificar para entrar no prédio, algo que não acontece com os parlamentares que desembarcam do carro oficial com motorista.
          A austeridade do senador não poupou nem sua esposa. Embora trabalhasse no Congresso havia anos, ela pediu demissão para evitar insinuações de nepotismo.

Reportagem de Adriano Ceolin publicada em edição impressa de VEJA.


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sexta-feira, 6 de março de 2015

"A vaca vai pro brejo?"

Por Marta Suplicy - Folha de São Paulo

                   É um privilégio neste momento crítico da política brasileira voltar a este espaço que ocupei em 2011 e 2012. Já colaborei na Folha, em cadernos e anos diversos, exercendo atividade diferente da que tenho hoje. Tenho consciência da importância que foi chegar a milhares de pessoas quebrando tabus, defendendo os direitos do povo, das mulheres e minorias, avançando em temas de difícil aceitação.
          Senadora, e com uma visão muito crítica da situação política brasileira, sinto-me no dever de exercer neste espaço a audácia e transparência que caracterizaram minha vida.
          Em política existem duas coisas que levam a vaca para o atoleiro: a negação da realidade e trabalhar com a estratégia errada.
          O governo recém-empossado conseguiu unir as duas condições. A primeira, a negação das responsabilidades quando a realidade se evidencia. A segunda, consequência da mentira, desemboca na estratégia equivocada. Estas condições traduzem o que está acontecendo com o governo e o PT.
          O começo foi bem antes da campanha eleitoral deslanchar. Percebiam-se os desacertos da política econômica. Lula bradava por correções. Do Palácio, ouvidos moucos. Era visto como um movimento de fortalecimento para a candidatura do ex-presidente já em 2014. E Lula se afasta. Ou é afastado. A história um dia explicará as razões. O ex-presidente só retorna quando a eleição passa a correr risco.
          Afunda-se o país e a reeleição navega num mar de inverdades, propaganda enganosa cobrindo uma realidade econômica tenebrosa, desconhecida pela maioria da população.
          Posse. Espera-se uma transparência que, enquanto constrangedora e vergonhosa, poderia pavimentar o caminho da necessária credibilidade.
          Ao contrário, em vez de um discurso de autocrítica, a nação é brindada com mais um discurso de campanha. Parece brincadeira. Mas não é. E tem início a estratégia que corrobora a tese de que quando se pensa errado não importa o esforço, porque o resultado dá com os "burros n'água".
          Os brasileiros passam a ter conhecimento dos desmandos na condução da Petrobras. O noticiário televisivo é seguido pelo povo como uma novela, sem ser possível a digestão de tanta roubalheira. Sistêmica! Por anos. A estratégia de culpar FHC (não tenho ideia se começou no seu governo) não faz sentido, pois o tamanho do rombo atual faz com que tudo pareça manobra diversionista. 
          Recupera-se o discurso de que as elites se organizam propagando mentiras porque querem privatizar a Petrobras. Valha-me! O povo, e aí refiro-me a todas as classes sociais, está ficando muito irritado com o desrespeito à sua inteligência. 
          Daqui a pouco o lamentável episódio ocorrido com Guido Mantega poderá se alastrar. Que triste.

Marta Suplicy é senadora, ex-ministra da cultura, do turismo e ex-prefeita de São Paulo.

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terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

TÁBUA DE SALVAÇÃO


(Homenagem a Listinha, meu irmão de sangue e fé)
Por João Bosco da Silva. 

DURANTE anos (cinco, seis, sete? Sei lá quantos!), as vidas minha e de Lista foram boas até demais. Desocupados, sempre a correr, a brincar e... a brigar - parecíamos a dupla Cosme e Damião, de tão juntos que ficávamos. Era caçando passarinho, matando rolinha de baladeira, atirando de besta em lagartixas, calangos, mocós, camaleões...
        Ah, como era bom comer rolinha sapecada na brasa!
        Fosse de estilingue, de arco, de besta e até em jogar pedra, a pontaria de Lista era melhor que a minha. Impressionante! No corpo a corpo, nunca venci uma parada, salvo na vez em que lhe tomei o quicé. E tal só aconteceu, acho, por conta de tê-lo pegado desprevenido. Mesmo após Jorge o haver colocado muito cedo no trabalho pesado da roça, nossos encontros, agora mais raros, não deixavam de ser uma festa.
        Com o tempo, comer rolinhas sapecadas perdeu a graça, pois havíamos descoberto a arte culinária de fazer mal-assada: torta caseira de ovos batidos e fritos no azeite de coco ou na banha de porco. Cada um de nós "roubava" da despensa de sua casa os necessários ingredientes: ovos, azeite, sal, goma, um pouco de farinha e até o fósforo para acender o fogo. Em vista de em minha casa não existir frigideira, cabia a Evangelista levar a da sua para o "bem-assar" da mal-assada.
        Era uma festa, ou mais do que isto: um lauto banquete! Que o diga da nossa alegria a velha, silenciosa e conivente gameleira do Riacho de Mané João, sob cuja sombra perpetrávamos nossos recorrentes "crimes"!
       Dando sequência às nossas variadas "ocupações", certo dia saímos cedo para tirar flecha, material especial para fazer gaiolas e alçapões pra pegar canário, sofreu e outras aves de nossa rica e canora fauna passarinheira.
        Em vista de nos arredores de casa já o produto estar escasso, decidimos ir até o riacho temporário de Zé Ferreira, situado a quase dois quilômetros de distância, já chegando à antiga casa de Donana. Grotão de altos rochedos, em suas beiradas abundava o material de que precisávamos. De cada touceira, que de tantas não se contavam, alteavam-se belas flechas, linheiras e grossas, soltando no alto seus lindos pendões de rústicas flores amarelas.
        - É cada vara de dar gosto! - balbuciei, extasiado.
ingredientes: ovos, azeite, sal, goma, um pouco de farinha e até o fósforo para acender o fogo. Em vista de em minha casa não existir frigideira, cabia a Evangelista levar a da sua para o "bem-assar" da mal-assada.
        Era uma festa, ou mais do que isto: um lauto banquete! Que o diga da nossa alegria a velha, silenciosa e conivente gameleira do Riacho de Mané João, sob cuja sombra perpetrávamos nossos recorrentes "crimes"!
       Dando sequência às nossas variadas "ocupações", certo dia saímos cedo para tirar flecha, material especial para fazer gaiolas e alçapões pra pegar canário, sofreu e outras aves de nossa rica e canora fauna passarinheira.
        Em vista de nos arredores de casa já o produto estar escasso, decidimos ir até o riacho temporário de Zé Ferreira, situado a quase dois quilômetros de distância, já chegando à antiga casa de Donana. Grotão de altos rochedos, em suas beiradas abundava o material de que precisávamos. De cada touceira, que de tantas não se contavam, alteavam-se belas flechas, linheiras e grossas, soltando no alto seus lindos pendões de rústicas flores amarelas.
        - É cada vara de dar gosto! - balbuciei, extasiado.
        - Dá até pra gente vender gaiolas - sugeriu Lista, de forma pragmática.
        Como eu era mais forte e tinha jeito para o corte, me designei para o trabalho de poda. Facão na mão, fui abrindo caminho por sobre as bromeliáceas, cortando as largas folhas de espinhos aduncos até chegar a cada flecha, decepá-la bem no tronco, jogando-a para o companheiro, que a ia livrando dos nós e pequenas folhas que se formavam ao longo do caule.
        Já tínhamos material em quantidade. Mas, então, avistamos uma flecha tão grande e linheira, que excedia às demais em beleza e qualidade. Só que ela estava bem na borda do penhasco, a touceira de que saía já quase pendendo para o abismo.
        - Me arrisco? - indaguei, com certo receio.
        - É perigoso, você não alcança; a flecha está quase na beira do talhado - alertou meu parceiro, preocupado.
        Talvez para tentar sobrepujá-lo pelo menos em alguma coisa, me propus o desafio, logo entrando em ação, pulando sobre touceiras e mais touceiras. Em dado momento, quase desisti, visto que já estava todo espinhado nos braços e pernas. O orgulho, porém, falou mais alto. Fui em frente e, com dificuldade, alcancei o objetivo. Quando, porém, dei a primeira cutilada no tronco da famosa flecha, escorreguei em uma pedra e lá me fui descendo rumo ao abismo, bracejando e lutando para me agarrar em alguma coisa que evitasse a queda, a angústia e o medo já me dominando. Dez metros abaixo, a areia branca do riacho parecia me espreitar. Pensando na morte iminente, me preparei para o tombo inevitável.
        Era impossível retornar, mesmo porque não existia qualquer apoio para os pés ou algo em que me agarrar. Então o milagre aconteceu: os recurvos espinhos da última grande touceira penetraram em minhas costas através da camisa, por sorte abotoada em todos os botões. Graças ao meu pouco peso, fiquei dependurado, flutuando no ar em situação deveras periclitante.
      Bendita presença de espírito de meu sobrinho-irmão. Rapidamente, estendeu uma vara de flecha, na qual me agarrei com todas as forças. E ele, buscando arrancar energias de sua apoucada estrutura física, conseguiu me puxar. Foi uma luta titânica que resultou vitoriosa.
     Hoje, refletindo sobre esse episódio arrepiante, chego à conclusão de que minha tábua de salvação não foi a vara de flecha, tampouco a camisa que me segurou; elas serviram apenas de instrumento. Com certeza, foi a decidida e rápida iniciativa de Evangelista. Devido a sua ação, não tive uma perna quebrada, um braço fraturado, algumas costelas à mostra, a cabeça partida...
       Possivelmente lhe devo a vida.
       Obrigado, irmão!

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domingo, 1 de fevereiro de 2015

Colírio



Keylane Ramos
Com seu sorriso contagiante vem iluminar o nosso blog.


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terça-feira, 27 de janeiro de 2015

O diretor sumiu

          Tenho pensado muito sobre a delicadeza e a importância da transparência nos dias de hoje. Temos vivido crises de todos os tipos: crise econômica, política, moral, ética, hídrica, energética e institucional. Todas elas foram gestadas pela ausência de transparência, de confiança e de credibilidade. 
          Se tivesse havido transparência na condução da economia no governo Dilma, dificilmente a presidente teria aprofundado os erros que nos trouxeram a esta situação de descalabro. Não estaríamos agora tendo de viver o aumento desmedido das tarifas, a volta do desemprego, a diminuição de direitos trabalhistas, a inflação, o aumento consecutivo dos juros, a falta de investimentos e o aumento de impostos, fazendo a vaca engasgar de tanto tossir. 
          Assim que a presidenta foi eleita, seu discurso de posse acompanhou o otimismo e reiterou os compromissos da campanha eleitoral: "Nem que a vaca tussa!"
          Havia uma grande expectativa a respeito do perfil da equipe econômica que a presidenta Dilma Rousseff escolheria. Sem nenhuma explicação, nomeia-se um ministro da Fazenda que agradaria ao mercado e à oposição. O simpatizante do PT não entende o porquê. Se tudo ia bem, era necessário alguém para implementar ajustes e medidas tão duras e negadas na campanha? Nenhuma explicação. 
          Imagina-se que a presidenta apoie o ministro da Fazenda e os demais integrantes da equipe econômica. É óbvio que ela sabe o tamanho das maldades que estão sendo implementadas para consertar a situação que, na realidade, não é nada rósea como foi apresentada na eleição. Mas não se tem certeza. Ela logo desautoriza a primeira fala de um membro da equipe. Depois silencia. A situação persiste sem clareza sobre o que pensa a presidenta. 
          Iniciam-se medidas de um processo doloroso de recuperação de um Brasil em crise. Até onde ela se propõe a ir? Até onde vai o apoio à equipe econômica? 
          Para desestabilizar mais um pouco a situação, a Fundação Perseu Abramo, do PT, critica as medidas anunciadas, o partido não apoia as decisões do governo e alguns deputados petistas vociferam contra elas. Parte da oposição, por receio de se identificar com a dureza das medidas, perde o rumo criticando o que antes preconizou. 
          O PT vive situação complexa, pois embarcou no circo de malabarismos econômicos, prometeu, durante a campanha, um futuro sem agruras, omitiu-se na apresentação de um projeto de nação para o país, mas agora está atarantado sob sérias denúncias de corrupção. 
          Nada foi explicado ao povo brasileiro, que já sente e sofre as consequências e acompanha atônito um estado de total ausência de transparência, absoluta incoerência entre a fala e o fazer, o que leva à falta de credibilidade e confiança. 
          É o que o mercado tem vivido e, por isso, não investe. O empresariado percebe a situação e começa a desempregar. O povo, que não é bobo, desconfia e gasta menos para ver se entende para onde vai o Brasil e seu futuro. 
          Acrescentem-se a esse quadro a falta de energia e de água, o trânsito congestionado, os ônibus e metrôs entupidos, as ameaças de desemprego na família, a queda do poder aquisitivo, a violência crescente, o acesso à saúde longe de vista e as obrigações financeiras de começo de ano e o palco está pronto. 
          A peça se desenrola com enredo atrapalhado e incompreensível. O diretor sumiu. 


MARTA SUPLICY é senadora pelo PT-SP. Foi prefeita de São Paulo (2001-2004), ministra do Turismo (2007-2008) e ministra da Cultura (2012-2014).


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quinta-feira, 22 de janeiro de 2015

Colírio

MAYKELINE ROCHA

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domingo, 11 de janeiro de 2015

O DOCE PICOLÉ DE... FÁTIMA


          A PROVA PESSOAL - e inconteste! - da religiosidade dedicada a intermedianeiros vem das minhas mais tenras lembranças, e data do ano de 1953, quando corria em peregrinação a imagem de Nossa Senhora de Fátima, vinda de Portugal para gáudio e glória da grei católica do sofrido Povo Nordestino. A visita da Santa aos Picos dar-se-ia em outubro daquele ano, mas os preparativos do povo para tão raro acontecimento já vinham de longa data. Lembro-me de que, por ocasião das farinhadas em junho, já todo mundo falava da grande festa e cuidava de economizar um dinheirinho para tal fim. Havia passagens, roupas de guarda, calçados para as mulheres e botinas novas para os homens. As despesas seriam enormes...
          Turmas de voluntários tapavam buracos, rebaixavam ladeiras e lombadas e roçavam caminho para tornar trafegável a precária vicinal que ligava Jenipapeiro  à grande Central de piçarra, construída havia alguns anos, rasgando o sertão inculto para ligar Picos a nossa Capital, para um lado, e ao resto do país, para o outro, através de Pernambuco. Para completar a pequena verba que a Prefeitura de Picos mandara, foi preciso arrecadar “esmolas” em pios leilões e doações espontâneas.
          Antecipadas consequências começaram a surgir dessa perspectiva de festa. O papa Pio XII, devoto de Nossa Senhora, já antes incrementara a oração do terço no seio das famílias como forma de combater a incipiente migração de católicos para os cultos protestantes, em pleno florescimento após a Proclamação da República, em 1889, regime que tornou o Brasil, constitucionalmente, um país laico, ou seja, em que se permitia a liberdade de culto. A vinda da imagem da Santa portuguesa ao país serviu de estímulo ao redobrado fervor religioso que se estabeleceu.
          O jenipapeirense não poderia ficar de fora desse engajamento mariano-fanático. Assim, no campo espiritual, maior ênfase foi dada à reza do santo terço, tornando-o bem mais longo em adendas orações e humildes queixas. Sentimento de fervor e piedade era visível em cada rosto. Para nós, meninos, que nada entendíamos, aqueles esticados terços eram verdadeiro suplício. A gente não podia se mexer, se coçar, falar ou bater pestana. A rabiçaca logo vinha, com promessa de alentada coça em caso de recidiva.
          Por outro lado, o comércio floresceu com o inusitado aumento da “troca” [1] de santinhos, terços e rosários, adquiridos no Juazeiro de Padim Ciço e "trocados" a peso de ouro nos dias de feira. Contas brancas e azuis alternando-se na divisão dos mistérios (gozosos, gloriosos, dolorosos etc.), enfeitavam, aos milhares, os pescoços de vetustas senhoras e de frescas senhorinhas, todas possuídas desse fervor ingênuo e carola que as levava a realizar intermináveis sessões de ladainhas e rosários, ora em alevantadas vozes, ora apenas em sussurros dos quais só o leve movimento labial era perceptível. Até veneráveis anciões deram de usar rosário no peito.
          Após esses preliminares, para muitos cheios de dolorosas expectativas, chega, afinal, o grande dia da viagem. De véspera, caminhões e mais caminhões paus-de-arara chegaram ao vilarejo, causando tropelias e espanto, que caminhão era novidade só de poucos conhecida. Acorre-me à lembrança que um desses caminhões - o carro do Expedito, como passou a ser referido – trazia na parte de trás enorme cruzeiro de madeira como símbolo da fé e religiosidade de seu proprietário. Aquilo mais parecia uma estratégia de negócio, vez que foi bastante procurado pelos fiéis para nele embarcarem na santa peregrinação.
            Era muita gente se alvoroçando, arrumando fatiotas no saco de lona e vindo para perto dos caminhões a fim de prevenir lugar e não perder a viagem. Resta referir que no dia anterior já caravanas e mais caravanas haviam partido, a cavalo ou a pé, como meu tio Nanô (Antônio Leôncio), para uma estirada de quase 15 léguas. Eu, então menino de 9 anos, era todo ansiedade. Afinal, pela primeira vez, iria conhecer a grande cidade – os Pico, como se dizia na linguagem cabocla.
          
Da viagem propriamente dita, pouco tenho a relatar, a não ser os percalços naturais, como o enorme calor do forte sol do meio dia, a poeira vermelha da piçarra que logo a todos igualou num único borrão, os catabis que ameaçavam jogar fora da carroceria os bestifica-dos passageiros, além, é claro, da enorme alga-zarra de crianças, jovens, adultos e velhos, todos deixando extravasar sua alegria pelo fato inédito e talvez único de suas vidas: a viagem de caminhão para ver a Santa!
            Das acomodações, nem é bom falar! Numa fazenda situada onde depois funcionou o seminário, então propriedade de Dr. Moura, dezenas de oiticicas, mangueiras e cajueiros serviram ao pernoite dos peregrinos, cujas “tipóias” foram armadas de qualquer maneira. Quem não trouxe rede, estendeu-se no chão, sobre o tapete macio de folhas secas. Afora uma ou outra picada de formiga, a dormida foi tranqüila e calma. Parece que em respeito à Santa, nem cobra deu as caras por ali.
            Correu boato de um fato, pitoresco para alguns e pecaminoso para outros, dando conta de que, altas horas da noite, quando a multidão dormia nessa descuidada promiscuidade, uma senhora, julgando-se "procurada" pelo marido, teria indagado, em voz baixa:
            “ - Antão?
            - Que que é, mulé?
            - Antão, tu tá n´eu?
            - Não, diacho; vá drumi, que hoje num é dia disso, não”.
            Daí a pouco:
            “ - Antão?
            - O que é, mulé?
            - Tu num tá mermo n´eu não, home?
            - Já dixe que não; ora que coisa!
            - "Antão", tão..."
            - "Te aqueta, mulé!"
            Teria o ato libidinoso se consumado? Ninguém sabe. O fato não foi comprovado, embora muito se tenha cogitado da identidade do espertinho que tentou tirar casquinha num sacrílego imbróglio amoroso.
            No dia seguinte teve almoço para todos. O doutor Moura mandara abater um boi para servir àquela gente conterrânea e amiga, talvez o último rasgo de generosidade dos Santos, conforme costume do finado coronel Chico Santo, o “Chico Fartura”, como era conhecido, que durante a vida jamais faltou com rancho e comida para o conterrâneo e parente que lhe batesse à porta.
            Desse memorável evento religioso, conta-nos Renato Duarte (1995), em PICOS - Os Verdes Anos Cinquenta, fato pitoresco, como segue:
No dia 22 de outubro de 1953 Picos vivenciou o maior acontecimento religioso de sua história: a visita da imagem de Nossa Senhora de Fátima, na peregrinação pelo Brasil. Na realidade, aquele foi um acontecimento extraordinário não só por ter reunido a maior quantidade de pessoas já vistas na cidade, como também pela ocorrência de uma inesperada demonstração de misticismo que iria dividir a atenção dos fieis. (...) Ao chegar em frente à igreja, por volta das 17 horas, a imagem foi colocada em um pedestal com pouco mais de dois metros de altura, construído no meio do patamar, e voltada para a multidão que se aglomerava na praça Frei Ibiapina. (...) Durante as celebrações religiosas ao longo do dia, três crianças, com trajes de pastores, postavam-se ajoelhadas diante da imagem, completando a recriação da cena da aparição em Fátima.
          
   A essa altura, não longe dali, acontecia um fenômeno de grande impacto popular e místico, e que sem dúvida contribuiu para empanar o brilho da programação oficial. No momento da chegada da imagem em frente à igreja, na tarde anterior, dezenas de pombos foram soltos, numa simbolização aos apelos da paz feitos por Nossa Senhora, de acordo com os três videntes. Um dos pombos, depois de sobrevoar a multidão, pousou na cabeça de uma camponesa - uma matuta, como se dizia -, ali permanecendo apesar do tumulto que o acontecimento gerou. Grande parte das pessoas que se encontravam no local interpretou o fato como um milagre, e a jovem, que se chamava Maria, passou a dividir com a imagem de Nossa Senhora de Fátima a atenção dos fieis. Em seguida, a jovem foi conduzida em romaria até à casa onde se encontrava hospedada, pertencente ao major Dirceu e localizada no atual nº 101 da rua Padre Cícero Santos. Como o pombo se mantivesse pousado na cabeça da jovem durante o trajeto, aumentou a crença do povo de que se tratava realmente de um milagre, e o pequeno quarto dos fundos da casa onde ela havia sido alojada tornou-se um local de intensa romaria. Apesar dos esforços dos padres em minimizar as conotações místicas do fenômeno, não era pequeno o número de pessoas que acreditavam estar diante de um novo milagre de Nossa Senhora. A romaria à casa do major Dirceu só terminou quando Maria regressou ao seu local de origem. (p. 121/124)

         Menino do interior, matuto, deslumbrado e abestalhado com a "Cidade Grande", estacionado a quase 200 metros do local em que se encontrava a imagem da santa, não tinha como tomar conhecimento desse extraordinário acontecimento em que toda a mística e religiosidade enviesada do povo brasileiro e especialmente do nordestino se revelava de forma inequívoca e espetacular.
            Da festa propriamente dita, pouco posso contar. Só sei que jamais havia visto multidão maior e tão compacta. A procissão, ao anoitecer daquele 23 de outubro de 1953, clareou o céu com suas milhares de velas ardentes. A grande Avenida Getúlio Vargas e adjacências, bem como o grande largo da igreja matriz (ali se realizava a grande feira semanal), ficaram completamente tomados. No grande patamar, erguia-se enorme cruzeiro, fortemente iluminado de alto a baixo. Tudo grande e belo! E majestoso!
            A cerimônia era um-não-acabar-mais de orações e cantos a retumbar na praça. Apesar de irradiados por diversas amplificadoras, colocadas em pontos estratégicos, o som não passava de zum-zum-zum em que não se distinguiam as palavras, mesmo porque a maioria era em latim, como o "Te Deum Laudemur", o "Gloria In Excelsis Deo", o "Magnificat, Magnificat". (Claro que na época eu não sabia latim, como a quase totalidade dos conterrâneos que ali se encontravam. Isso eu só viria a conhecer depois). Apenas aqui e ali entremeavam-se hinos em português, como o "A Nós Descei, Divina Luz". Quando, porém, já quase no final da celebração, o som do conhecidíssimo hino à virgem se fez ouvir, o urro da multidão repercutiu igualmente ao reboar do trovão nos céus:
                        A treze de maio
                        Na cova da Iria
                        No céu aparece
                        A virgem Maria
            Ao que a multidão, piedosa e exultantemente estrondeava:
                        Avé, Avé, Avé Mariá
                        Avé, Avé, Avé Mariá

            Impressionou-me, sobremaneira, o uníssono da multidão ao responder esse refrão ou dizer amém. Começava num murmúrio e ia num crescendo até semelhar-se a um urro medonho e coleante, como a multidão que serpenteava apertada pelo labirinto de becos e ruas de acesso. Apoteose final, a queima de fogos de artifícios com suas baterias e rojões ensurdeceu a praça e fez dispersar o centauro humano numa debandada sem controle, em que se perdiam e se misturavam todos, com mães aflitas procurando filhos, mulheres buscando maridos, véus pegando fogo na chama das velas, chinelos e sapatos ficando, gritaria e atropelo como nunca se vira, num verdadeiro "estouro de boiada" humana.
            Daquele outubro memorável muitas coisas me ficaram indelevelmente gravadas. Andei de carro pela primeira vez; também pela vez primeira conheci uma cidade de verdade: os Pico, com sua casa de andar no alto do morro, aquela mesma que a gente avistava do Viroveu, em manhã clara, do alto do chapadeiro. Bem assim pudera ver e ouvir o ronco das motocicletas voadoras, com seu barulho infernal e ensurdecedor. Disseram que um dos corredores naqueles "besouros" sem asa era Carlos Luz, filho do prefeito Justino Luz. Outrossim, para aquela festa, meu pai comprara um par de sapatos, dos quais perdi um pé no ruge-ruge da retirada. O outro ficou inservível para uso, mas guardado por muito tempo como objeto da inesquecível aventura. E afinal – pela primeira vez – pudera experimentar, ou quase, o "docegelo" de um picolé! Mais de meio século depois,de tão profundamente encravada que ficou em meu subconsciente, essa lembrança ainda me aflora à mente e me faz eriçar os pelos de emoção...
            Meio dia, sol tinindo de quente. Junto aos caminhões enfileirados, o burburinho da volta, a procura das e pelas pessoas para que ninguém perdesse a condução.
Num carrinho móvel, um vendedor apregoa: 
- Picolé, picolé! Geladim, geladim!
Ao meu lado, Chico de Antonino solicita:
- Pai, compra um!
           O pai de Chico compra. Pelas chupadas que o garoto dá na mitigativa guloseima, deduzo que deve ser muito gostosa.
            - Pai – digo, por minha vez – também quero um.
            O pai, meu pai, bate no riscado, caça, procura. Nem um níquel no bolso. Carrancudo, responde para o filho, esperançosamente aflito:
            - Compro isso não; é porcaria.
Inveja, olhar comprido. De que tamanho? Sei lá! Fico apenas espiando, sofrendo. Em dado momento, da boca do outro desprende-se um naco e cai no banco de madeira em que ambos estamos sentados. Não pude evitar, foi instintivo. Pego a pequena porção, que se derrete antes que alcance minha boca. Meus dedos, porém, ficam molhados. Coloco-os na boca...
           Dos olhos de meu pai escorre um filete de lágrima.
           Ai, doce (?) picolé da infância! O picolé de... Fátima.





[1] Referindo-se à aquisição de objetos sagrados e religiosos, não se falava em compra, dizia-se:  “troca”. 


Autoria de João Bosco da Silva. Este texto faz parte do livro ainda inédito: DE PÉ - COXÓ. 
Natural de Francisco Santos, tem dedicado seu tempo a escrever em verso e prosa. Mesmo tendo ficado ausente durante muitos anos, João Bosco conseguiu reacender a chama do amor à sua terra natal e tem contribuído significativamente com a nossa cultura, para tanto tem publicado alguns livros de teor autobiográfico. 
Tem publicados os seguintes livros: Pensão Cacilda; Geralho; Viroveu, um sentimento interior(ano) e outras histórias; Jenipapeiro, a terra dos espritados – Memorial geopolítico; Placebo; Romanceiro dos Versejadores e Repentistas de Jenipapeiro.
Tem outras obras ainda não publicadas: O Sacerdote de Hipócrates, novela premiada em primeiro lugar em concurso literário da FUNDAC, em 2006; O Santo Pároco Entre Aspas, romance; Assim na terra como no sonho, romance; Fazendeiro DiVersos, poesia moderna; Estação do estilo e forma, livro de sonetos.


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