quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

Crônica – Dia de Ano Novo – João Bosco da Silva


          DIA DE ANO NOVO. Confraternização no mundo ocidental. O ano velho entregando ao ano novo sua carga de alegrias, realizações, esperanças e - decepções! Marcava também o dia de ano o início de novo ciclo anual de trabalho, com a subida de todos para seus retiros de inverno, no alto das serras.
          Dia de ano novo ou simplesmente dia de ano era geralmente um marco na vida do jenipapeirense. Dia festivo, dia de encontro, dia de afilhado tomar a bênção aos padrinhos e esperar, em contrapartida, um presentinho, uma lembrancinha qualquer. Era a tradição, ou mais do que isto: era obrigação recíproca.
          Para mim havia sempre uma esperança. Uma certeza, aliás. Que meus padrinhos, fosse um, fosse o outro, jamais falhavam. Pelo menos um deles "molhava" a mão do afilhado. Não que eu esperasse bons presentes: por exemplo, um carneiro ou uma bezerra, como era o caso de alguns amigos meus. Não, nada desse gênero. Que meus padrinhos eram pobres. Contentava-me com a moedinha. A infalível moedinha - amarela, mágica - com que comprava as gostosíssimas mariolas na bodega do velho Boronga.
          Velho bom aquele! Gordo, papadas se derramando no peito, barriga por acolá de grande, voz cavernosa de tão grossa. Tinha sempre um dichote, um piparote ou uma cacholeta a dar.
- Toma, moleque, a mariola.
          De quebra, um agrado. Sempre um bombom ou dois. E tome outra cacholeta. Velho bom! Morreu em 1949, num dia de grande cheia do rio. Lembro que fiquei trepado na cerca da rocinha para ver o caixão passar. Passou pelo outro lado, porque o rio não dava passagem. Assim, não pude ver meu amigo em seu caixão cor de vinho, debruado de fitas brancas.
          Boronga! Uma lembrança que ainda me comove.
Dia de ano era isto: os destão (dez tostões) de meu padrinho Jaime eram sagrados. Os de Bió, nem sempre. E eram sempre menos, às vezes só quinhentorréis ou um cruzado. Também, era só padrinho de crisma! E era irmão, não carecia de levar tão a sério a tradição.
          Esperado, bem-vindo, bendito dia de ano. Que gostosas mariolas devorava! Por conta daquela compra anual, até ganhava bombons de brinde. Tão diferente d'agora! Durante anos - quatro, cinco, sei lá quantos? - com as mesmas moedinhas comprava as mesmas mariolas. Meus filhos, anos depois, embora não entendendo o fenômeno da inflação, comentavam entre si, certo final de ano:
- Será que o tio Mariano este ano vai chegar aos 200?
          Vejam só! Aqui já não eram dez tostões ou quinhentos réis. Eram 200 cruzeiros. No ano anterior o tio os havia agraciado com 100 cruzeiros; 100 para cada um. Daí o comentário, ano depois. Daí o sentido do aumento. Porque o sentiam na aquisição das próprias guloseimas.
          Primeiro de janeiro era, também, um divisor de águas, pelo menos lá em casa. Marco constante no ciclo anual dos acontecimentos, dia de ano era o encontro de todos os filhos e netos na comunhão geral, na confraternização das bênçãos, nas palestras descontraídas, no joguinho de cartas dos adultos - bisca ou três-sete -, na correria desenfreada de tantos primos se encontrando pelas salas, varanda, quartos escuros, ou a treparem nos velhos pés de trapiá do Alto.
Já o dia seguinte era de recolhimento, de tristeza. Tradição de muitos anos, logo cedo rumávamos para a igreja, onde era rezada a visita de "inteiro" de mais um ano da morte de Maria, falecida nos idos de 1945. Já a visita à cova não se fazia mais. Cemitério longe, muito o que fazer na preparação da mudança, logo mais à tarde. Nos finados, aí sim, uma reza, umas flores de flamboyant, uma vela ao pé das covas, em intenção das três almas: de minha irmã Maria, de minha mãe Sarica e de madrinha Cota, todas ali juntinhas, emparelhadas.
          Invariavelmente, na tarde desse dia era a mudança, a subida para a serra, para o retiro no nosso amigo e alegre Viroveu, onde passaríamos os próximos seis meses.
A mudança para as serras era acontecimento comum na vida da comunidade. Do meu conhecimento, poucas eram as famílias que não se mudavam. Houve tempo em que só ficavam na cidade Antônio Moisés, Batista, Heli de Zé Belchior, a velha Libânia e Feliciana. Além, é claro, das poucas "raparigas" da Rua da Puxada.
          Praticamente todo mundo possuía um pedacinho de terra para plantar feijão, milho e mandioca. Por mais retalhada que estivesse a terra, sempre sobrava um pedacinho de chão para cada um. Eram todos pobres, poucos se destacando como ricos ou remediados, mas não tão pobres que não tivessem "onde cair morto".
Assim, na época da invernada, todos subiam para seus retiros, distantes do povoado entre uma a três léguas, no altiplano dos chapadões de boas terras, onde a lavoura era exercida com amor e dedicação. A mudança tinha o sentido econômico de evitar perda de tempo nos deslocamentos diários entre as serras e a cidade, ou a Ribeira, onde ficavam as residências de verão, bem como, e principalmente, o de usufruir melhor de toda a abundância que a temporada oferecia.
          Ao lado da terra, cada pai de família possuía também suas vaquinhas de leite, em maior ou menor quantidade. Daí o queijinho para comer com mel de abelha nos "dias grandes" da semana santa. Queijinho sempre provado na hora da feitura, à beira da panela, gostoso experimento de adultos e crianças. Raro em outras épocas do ano, constituía-se almoço de muito luxo e valor, nobre refeição de toda sexta-feira santa. O leite, a coalhada, a nata, a manteiga, a melancia, o maxixe, o feijão e o milho verde eram produtos de não menos valia em nossa rotineira dieta alimentar, no tempo da estação das chuvas.
          Tudo cheirava a fartura.
          Não obstante tudo isso, meu coração de menino apertava-se com a aproximação do inverno. Inverno significava trabalho: plantar feijão, plantar mandioca, plantar milho. Arre! Eram serviços rápidos, em uma semana estariam terminados. Mesmo assim, por essa semana de trabalho, eu maldizia o Viroveu, com  todas  as  suas  "pragas". Maldizia  pelo inverno,  pois havia  relâmpagos  e trovões brabos, de que eu tinha pavor! Maldizia pelas frieiras, que tanto incomodavam durante a noite. Lembro bem as mezinhas receitadas por meu  pai. De manhãzinha, ainda antes do nascer do sol, ele sempre ia me acordar para que eu fosse colocar o pé sob o jato de urina de uma das vacas. "Só serve o primeiro mijo, que vem quente e chegado no sal" - justificava o velho. O banho nas pernas era inevitável porque o jato, ao tocar no pé, suspenso a meia altura, espadanava urina para todo lado. À noite, era a compressa morna de folha de cabaça ou, na falta desta, de folha de abóbora sobre os pés inchados. Até que era gostosa a coceira, passados os primeiros momentos de quentura, quando, então, eu passava a fazer suaves massagens em torno dos dedos abertos, grossos de pus. E, finalmente, maldizia a conjuntivite, que a gente chamava dordói, com suas remelas. Para curá-la, usava-se o leite de peito ou, na falta de mulher em período de amamentação, o colírio Moura Brasil, doedor pra peste.
          Afora isso, a vida era muito boa.
          Tão poucos os serviços no Viroveu! Tirante essa semana terrível, trabalhar duro mesmo só em mais três ocasiões: nas apanhas de feijão, na carregação do paul para o plantio do alho e nas farinhadas.

          Com o tempo, até esses servicinhos leves acabaram, em vista da perspectiva de eu ir para o estudo em Jaicós... pra ser “doutor”, conforme augurava seu Loura...


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