terça-feira, 24 de fevereiro de 2015

TÁBUA DE SALVAÇÃO


(Homenagem a Listinha, meu irmão de sangue e fé)
Por João Bosco da Silva. 

DURANTE anos (cinco, seis, sete? Sei lá quantos!), as vidas minha e de Lista foram boas até demais. Desocupados, sempre a correr, a brincar e... a brigar - parecíamos a dupla Cosme e Damião, de tão juntos que ficávamos. Era caçando passarinho, matando rolinha de baladeira, atirando de besta em lagartixas, calangos, mocós, camaleões...
        Ah, como era bom comer rolinha sapecada na brasa!
        Fosse de estilingue, de arco, de besta e até em jogar pedra, a pontaria de Lista era melhor que a minha. Impressionante! No corpo a corpo, nunca venci uma parada, salvo na vez em que lhe tomei o quicé. E tal só aconteceu, acho, por conta de tê-lo pegado desprevenido. Mesmo após Jorge o haver colocado muito cedo no trabalho pesado da roça, nossos encontros, agora mais raros, não deixavam de ser uma festa.
        Com o tempo, comer rolinhas sapecadas perdeu a graça, pois havíamos descoberto a arte culinária de fazer mal-assada: torta caseira de ovos batidos e fritos no azeite de coco ou na banha de porco. Cada um de nós "roubava" da despensa de sua casa os necessários ingredientes: ovos, azeite, sal, goma, um pouco de farinha e até o fósforo para acender o fogo. Em vista de em minha casa não existir frigideira, cabia a Evangelista levar a da sua para o "bem-assar" da mal-assada.
        Era uma festa, ou mais do que isto: um lauto banquete! Que o diga da nossa alegria a velha, silenciosa e conivente gameleira do Riacho de Mané João, sob cuja sombra perpetrávamos nossos recorrentes "crimes"!
       Dando sequência às nossas variadas "ocupações", certo dia saímos cedo para tirar flecha, material especial para fazer gaiolas e alçapões pra pegar canário, sofreu e outras aves de nossa rica e canora fauna passarinheira.
        Em vista de nos arredores de casa já o produto estar escasso, decidimos ir até o riacho temporário de Zé Ferreira, situado a quase dois quilômetros de distância, já chegando à antiga casa de Donana. Grotão de altos rochedos, em suas beiradas abundava o material de que precisávamos. De cada touceira, que de tantas não se contavam, alteavam-se belas flechas, linheiras e grossas, soltando no alto seus lindos pendões de rústicas flores amarelas.
        - É cada vara de dar gosto! - balbuciei, extasiado.
ingredientes: ovos, azeite, sal, goma, um pouco de farinha e até o fósforo para acender o fogo. Em vista de em minha casa não existir frigideira, cabia a Evangelista levar a da sua para o "bem-assar" da mal-assada.
        Era uma festa, ou mais do que isto: um lauto banquete! Que o diga da nossa alegria a velha, silenciosa e conivente gameleira do Riacho de Mané João, sob cuja sombra perpetrávamos nossos recorrentes "crimes"!
       Dando sequência às nossas variadas "ocupações", certo dia saímos cedo para tirar flecha, material especial para fazer gaiolas e alçapões pra pegar canário, sofreu e outras aves de nossa rica e canora fauna passarinheira.
        Em vista de nos arredores de casa já o produto estar escasso, decidimos ir até o riacho temporário de Zé Ferreira, situado a quase dois quilômetros de distância, já chegando à antiga casa de Donana. Grotão de altos rochedos, em suas beiradas abundava o material de que precisávamos. De cada touceira, que de tantas não se contavam, alteavam-se belas flechas, linheiras e grossas, soltando no alto seus lindos pendões de rústicas flores amarelas.
        - É cada vara de dar gosto! - balbuciei, extasiado.
        - Dá até pra gente vender gaiolas - sugeriu Lista, de forma pragmática.
        Como eu era mais forte e tinha jeito para o corte, me designei para o trabalho de poda. Facão na mão, fui abrindo caminho por sobre as bromeliáceas, cortando as largas folhas de espinhos aduncos até chegar a cada flecha, decepá-la bem no tronco, jogando-a para o companheiro, que a ia livrando dos nós e pequenas folhas que se formavam ao longo do caule.
        Já tínhamos material em quantidade. Mas, então, avistamos uma flecha tão grande e linheira, que excedia às demais em beleza e qualidade. Só que ela estava bem na borda do penhasco, a touceira de que saía já quase pendendo para o abismo.
        - Me arrisco? - indaguei, com certo receio.
        - É perigoso, você não alcança; a flecha está quase na beira do talhado - alertou meu parceiro, preocupado.
        Talvez para tentar sobrepujá-lo pelo menos em alguma coisa, me propus o desafio, logo entrando em ação, pulando sobre touceiras e mais touceiras. Em dado momento, quase desisti, visto que já estava todo espinhado nos braços e pernas. O orgulho, porém, falou mais alto. Fui em frente e, com dificuldade, alcancei o objetivo. Quando, porém, dei a primeira cutilada no tronco da famosa flecha, escorreguei em uma pedra e lá me fui descendo rumo ao abismo, bracejando e lutando para me agarrar em alguma coisa que evitasse a queda, a angústia e o medo já me dominando. Dez metros abaixo, a areia branca do riacho parecia me espreitar. Pensando na morte iminente, me preparei para o tombo inevitável.
        Era impossível retornar, mesmo porque não existia qualquer apoio para os pés ou algo em que me agarrar. Então o milagre aconteceu: os recurvos espinhos da última grande touceira penetraram em minhas costas através da camisa, por sorte abotoada em todos os botões. Graças ao meu pouco peso, fiquei dependurado, flutuando no ar em situação deveras periclitante.
      Bendita presença de espírito de meu sobrinho-irmão. Rapidamente, estendeu uma vara de flecha, na qual me agarrei com todas as forças. E ele, buscando arrancar energias de sua apoucada estrutura física, conseguiu me puxar. Foi uma luta titânica que resultou vitoriosa.
     Hoje, refletindo sobre esse episódio arrepiante, chego à conclusão de que minha tábua de salvação não foi a vara de flecha, tampouco a camisa que me segurou; elas serviram apenas de instrumento. Com certeza, foi a decidida e rápida iniciativa de Evangelista. Devido a sua ação, não tive uma perna quebrada, um braço fraturado, algumas costelas à mostra, a cabeça partida...
       Possivelmente lhe devo a vida.
       Obrigado, irmão!

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