sábado, 9 de março de 2013
O MANGALHEIRO - Os Jenipapeiríadas - Sexto Canto
Desta importante obra de resgate da história do povo de Francisco Santos, o poema OS JENIPAPEIRÍADAS, publicamos o sexto canto: O MANGALHEIRO.
I
De lavrador mãos calosas
do cabo da bruta enxada,
esse quase analfabeto
se transforma de virada
em vendedor competente,
que na conversa fiada,
como quem não quer, querendo,
seu produto vai vendendo!
II
Tal qual o camaleão,
que sempre muda de cor,
o bom francisco-santense
tem artes de vendedor,
por isso é tido e havido
como um tipo "vivedor";
ganha todas as partidas,
qual gato de sete vidas!
III
Partia de Chico Santo
nos antigos paus-de-arara,
além do alho levando
só a coragem e a cara,
esperança e fé em Deus,
virtudes hoje tão raras
- alavanca eficiente
para enfrentar o "batente"!
IV
Depois a coisa mudou
em face à legislação:
- vai de ônibus, na frente;
e o alho, de caminhão.
Vende aqui, vende acolá,
nas feiras deste mundão
- Pará, Tocantins, Goiás,
Maranhão e outros mais!
V
Floriano, Teresina,
Caxias, Andirobal,
Santa Inês, Santa Luzia,
Carolina, Bacabal,
Marabá, Imperatriz,
e tantas de porte igual;
entre grandes e pequenas,
citei algumas, apenas!
VI
Porque nosso herói sem nome,
destemido mangalheiro,
vira e mexe, anda e revira
por este Brasil inteiro,
atrás de novos mercados
por onde corre dinheiro,
tranças de alho no ombro,
vendendo com desassombro!
VII
Já as viagens por terra
eram em lombo de jumento,
cem, duzentas ou mais léguas
de pó, sede e sofrimento;
perigos e mais perigos
surgindo a todo momento,
a morte rondando em cada
esquina ou curva de estrada!
VIII
Nessas viagens a pé
o percurso era menor:
- Parambu, Tauá, Mombaça,
Iguatu, Crato ou Icó;
no rumo do Piauí,
Castelo e Campo Maior,
Teresina e Livramento, [1]
no mesmo prolongamento!
IX
Era um tempo de sofrer
no ganho da vida amarga,
o sol queimando sem pena
o corpo, que a pele larga,
sofrendo tanto ou até mais
que o próprio burro de carga;
mas de tudo se esquecia,
se boa venda fazia!
X
Mas veio o tempo ruim
e a situação mudou:
- a terra ficou mais pobre
e se desertificou,
o rio também morreu,
seu leito se assoreou.
Mandioca, feijão e alho
agora só dão trabalho!
XI
Que fazer, se boa safra
de feijão já não colhia?
Se a farinha e a tapioca
eram de pouca valia?
Se o rio agora cabeças
de alho, chochas, produzia?
Era tomar providência
pra resolver a pendência!
XII
Se a sorte o deixa por baixo,
de repente vira o jogo,
com seu jogo de cintura
reverte qualquer malogro,
pois tem as artes e manhas
do velho Cancão de Fogo.
matreirice - onça do mato,
rapidez - pulo do gato!
XIII
Apertado pela fome
e pela necessidade,
demonstra mais uma vez
toda versatilidade,
buscando horizontes novos
fora de sua cidade,
em centros como Brasília,
São Paulo e o Sul-maravilha!
XIV
No início, só os jovens,
destemidos e risonhos,
partiam nessa aventura
embalados pelos sonhos;
depois, chefes de família,
mudos, trêmulos, tristonhos:
- esperança e aflição
dentro da mesma emoção!
XV
Sem estudo, sem preparo
e sem qualificação,
aceitavam o subemprego
na pesada construção
ou nas fábricas - sofrendo
as peias da sujeição,
presos à fatalidade,
sem pão e sem liberdade!
XVI
Antes, livres passarinhos
a voar em céu de vento,
vêem-se, então, atrelados
a patrões sem sentimento,
sujeitos a duras regras
e irrisório rendimento,
que não merece outro nome
senão salário de fome!
XVII
O migrante, infelizmente,
vai inchar outras cidades,
novos hábitos ganhar,
e novas habilidades;
em colônias e favelas
criando comunidades,
sem bases estruturais
ou valores culturais!
XVIII
Heróis! Alguns, tendo sorte,
conseguem, com teimosia,
montar o próprio negócio,
se a ocasião propicia;
atuando em vários ramos:
- do alho à churrascaria,
açougue, fruta, verdura
- em tudo ele se aventura!
XIX
Dou mostra dessa mistura
em bazar de Araguaína:
- pimenta, cominho e cravo,
vela branca e parafina;
sutiã, calcinha, renda,
vestido de seda fina;
facão e faca de ponta,
e mais produtos sem conta!
XX
Muitas vezes alguns deles,
agindo com esperteza,
conseguem fazer fortuna
e até arrotar riqueza!
Mas isso é pau de gangorra,
que por sua natureza,
ora em cima, ora no chão,
sempre muda a posição!
XXI
Porém nem todos quiseram
empregos tão humilhantes,
ou, com vis expedientes,
agir como meliantes;
por isso, com muita garra,
viraram negociantes,
com base no mesmo alho,
que sempre lhes deu trabalho!
XXII
Quando nosso alho perdeu
qualidade e aceitação,
o mangalheiro partiu
atrás de outra solução,
buscando o produto fora,
de igual ou melhor padrão,
mas conservando os mercados,
duramente conquistados!
XXIII
Francisco Santos e Picos,
antes grandes produtores,
aos poucos foram virando
centros distribuidores
do alho de outros lugares,
vez que o rio, em estertores,
o pouco que produzia
o comprador não queria!
XXIV
Ver-se assim FRANCISCO SANTOS
tornar-se MERO ENTREPOSTO,
foi como se ver no RIO
um REI CAÍDO E DEPOSTO,
a dor presa em cada peito
e o pranto a rolar no rosto...
Porém, o que se fazer,
se era preciso viver?!
XXV
Tempo correu, a cidade
mudou de modos e caras,
adventícios vieram
de terras bem mais avaras;
novos costumes, virtudes (?)
Nenhumas, ou quase raras;
os Velhos Troncos... morrendo,
e a tradição... se perdendo!
XXVI
O nosso homem lá fora
aprendeu e conquistou
direito a não só comer
"o pão que o diabo amassou,"
mas, também, a usufruir
do que a cultura criou...
Por entre espinhos e escolhos,
tirou a venda dos olhos!
XXVII
Foi um longo aprendizado
desde o círculo de giz
até transpor essa cerca,
com a garra do aprendiz,
que busca um lugar ao sol,
e um canto pra ser feliz...
De mangalheiro a turista,
foi uma grande conquista!!!
XXVIII
No lugar do alheiro antigo,
matuto, triste, vencido;
surge um novo mangalheiro,
vivaz, esperto e sabido,
bastante civilizado,
não tão lido, mas corrido;
de Manaus ao Paraguai,
em toda parte ele vai!
XXIX
Por amor e por costume,
feito animal de cocheira,
sempre que pode, ele vem
em viagem rotineira,
rever parentes e amigos
na festa da padroeira;
muitos até com requintes,
em reluzentes D-Vintes!
XXX
Ora falei no presente,
outras vezes no passado,
dando ao leitor a idéia
de verso mal acabado;
foi mesmo proposital,
pra mostrar meu retratado:
se enverga, mas não se dobra,
e dos golpes se RECOBRA!
[1] Livramento era o nome antigo de José de Freitas-PI (N. do A.)
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